Quando o céu tiver escurecido a sexta-feira (18) em Porto Alegre, uma mulher de longos cabelos negros trajada em um vestido vitoriano descerá as escadas de um prédio do século passado lendo trechos de um livro sobre uma criatura horrenda, inumana, criada pelas mãos de um médico que desafiou as leis da vida.
A construção histórica é a Cinemateca Capitólio, que abre as portas, a partir das 19h, para a exposição Frankenstein - 200 anos do Prometeu Moderno. Pensada como atividade paralela ao Fantaspoa, o Festival Nacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, a mostra organizada pelo escultor e ilustrador Leo Dias de Los Muertos celebra os 200 anos do livro da inglesa Mary Shelley, considerado a primeira obra literária de ficção científica.
A mulher que descerá os degraus na noite de inauguração lendo o capítulo cinco do livro, aquele que descreve o momento em que um monstro veio ao mundo pelas mãos do médico Victor Frankenstein, é Anelise Dias, uma das 27 artistas convidadas para a exposição sediada na galeria do Capitólio, logo abaixo da escadaria.
É neste canto que Leo Dias recriou o laboratório onde se passa o ápice da história. Na sala, estrategicamente mal iluminada, estão distribuídas obras que ajudam a montar o clima sombrio em que a criatura foi concebida. Armários com antigos tubos de ensaio, quadros com diferentes representações do monstro que saiu da literatura para conquistar diversas facetas no cinema, uma cama cirúrgica onde foi concebido pelo médico e uma escultura da própria criatura prometem dar contornos ainda mais fantasmagóricos ao festival de cinema, que tem parte da programação sediada no Capitólio. A ambientação se completa com o odor de laboratório que Leo Dias garante conseguir a partir do uso de um simples desinfetante.
Quando teve a ideia de homenagear o personagem de Mary Shelley, na noite de 31 de dezembro de 2017, Dias não sabia que o livro lançado em 1818 estava prestes a completar duzentos anos. Ao fazer os cálculos, deu-se conta do tamanho da responsabilidade e se dedicou, desde então, a conceber uma criatura pelas próprias mãos.
Dia após dia, buscando sofrer o mesmo sono, a mesma fome e as mesmas variações de humor que acometeram o médico da história durante seu processo de criação, Leo tentou fazer com que sua obra se aproximasse fisicamente das descrições que o livro faz do monstro. Com base em um manequim, moldou um ser com cabelos compridos e escuros, pele amarelada e cheia de dobraduras.
Se, pelo contrário, a criatura de Mary Shelley não ganhou nome — e costuma ser confundida com seu criador, Victor Frankenstein —, o ser sem vida do escultor foi batizado de forma tipicamente brasileira: chama-se Francisco e tem um coração criado pelas mãos de Fernando Schmidt, que usou couro e a engrenagem de um relógio para representar a passagem do tempo.
Na visão do organizador da mostra, a história do monstro sem nome, criado a partir de um ímpeto do médico de subjugar a natureza e fazer valer a força da ciência, e logo após renegado por ser feio e desajeitado, traz questões ainda pertinentes aos dias de hoje. Por isso, mereceu uma exposição na qual, se não todos os artistas envolvidos, ao menos boa parte deles, leram o clássico.
— O monstro é inteligente, rejeitado por seu criador, lê vários livros e passa a vagar pelo mundo tentando entender quem é — reflete Dias.
Se o monstro da literatura ainda atrai fãs nos dias de hoje, certamente causaria transtornos se fosse, assim como conta a história, concebido por um médico com mania de grandeza em uma cama cirúrgica. Para criar a tensão perante a possibilidade de uma criatura inumana dividir a vida na Terra ao lado dos mortais, momentos antes da inauguração da mostra alguns artistas estarão nas redondezas do Capitólio distribuindo panfletos contra a exposição.
— Tudo o que é revolucionário, a sociedade não entende. Se isso (a criação de um monstro) realmente estivesse acontecendo aqui, a sociedade iria contra — observa o ilustrador Henrique Santini, ilustrador integrante da exposição.
Frankenstein - 200 anos do Prometeu Moderno
Na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1.085), como atividade paralela ao Festival Internacional de Cinema de Porto Alegre - Fantaspoa. Visitação de terças à sextas-feiras, das 9h às 21h, e aos sábados, domingos e feriados, das 14h às 21h. Até 3/06. Entrada gratuita.