Por sugestão de um amigo, Guilherme Ely, eu resolvi conhecer pessoalmente, em maio de 2001, Ary Rêgo (1918-2007). Ele era, então, um pacato cidadão e avô dedicado — aos 82 anos, buscava a neta Mariana na escola do bairro onde morava, o Jardim Lindoia. Naquela época, ele e dona Dayse, sua esposa, tinham nove netos, um presente dos quatro filhos do casal.
Muito antes disso, aos 32 anos de idade, ele já havia estabelecido laços definitivos com a piazada gaúcha ao assumir o comando do programa radiofônico Clube do Guri, levado ao ar durante 16 anos (entre 1950 e 1966), nas manhãs de domingo, pelas ondas da Rádio Farroupilha. Nos seis primeiros meses, a nova atração foi chamada de Clube do Papai Noel, mas logo depois, com o patrocínio da Fábrica Neugebauer, o nome mudou para Clube do Guri, referência a um dos produtos da empresa, o achocolatado Guri.
Transmitido ao vivo (primeiro, da sede da emissora na Rua Duque de Caxias; depois, a partir do incêndio que destruiu o prédio em 1954, do auditório localizado num casarão da Rua Siqueira Campos), era um programa musical em que crianças e adolescentes de cinco a 15 anos se apresentavam, cantando, tocando algum instrumento ou declamando. Na maioria das vezes, cantoras e cantores mirins interpretavam os sucessos de artistas famosos como Ângela Maria, Cauby Peixoto ou Nelson Gonçalves. Os participantes se apresentavam sempre acompanhados pelo pianista Ruy Silva e pelo Regional da Rádio Farroupilha.
Um incidente ocorrido nos bastidores do palco daquele auditório quase alterou a configuração da constelação das grandes estrelas da música brasileira. Em 1957, uma menina de 12 anos, que havia sido aprovada na pré- seleção realizada na véspera, chegou de roupa nova para cantar o samba-canção Lábios de Mel. Porém, uma prosaica hemorragia nasal acabou por manchar o vestido dela, além de causar-lhe um constrangimento tal que a candidata a cantora simplesmente desapareceu.
Seu Ary contava que, quase dois meses depois, ao entrar na Casa Sloper para comprar um presente de Dia das Mães para sua mulher, foi reconhecido por uma das balconistas, que relatou-lhe o desastre sucedido com uma sobrinha quando esta estava prestes a se apresentar. Então, o radialista persuadiu a tia a aconselhar a sobrinha a voltar, pedindo que não atribuísse maior importância ao fato sucedido. Felizmente, foi o que aconteceu. A menina, chamada Elis Regina, voltou para ser, dali em diante, uma das principais cantoras da história da música brasileira.
Foi pelo rádio, numa edição extra de um dos noticiosos, do dia 19 de janeiro de 1982 que Ary ficou sabendo, para sua tristeza, da morte de Elis.