Uma teoria conspiratória sobre a covid-19 que tem se espalhado pelas redes sociais alega que as vacinas contra o coronavírus terão “microchips” para colher a “identidade biométrica da população”. A tese é falsa. Não há nenhuma evidência que comprove o conteúdo do texto, publicado no blog Livro das Revelações.
O texto mistura uma série de informações falsas sobre projetos internacionais de identidade digital, como a Aliança ID2020 e o a2i, e sobre a Aliança Mundial para Vacinas e Imunização (Gavi, na sigla em inglês), entidade que atua para fornecer vacina para países pobres.
O blog reproduz em português trechos de um texto em inglês sobre a mesma teoria conspiratória, publicado em outubro de 2019 no blog “Natural News”. Na mensagem “original”, o coronavírus sequer é mencionado.
Inicialmente, não há notícia de que qualquer vacina com microchip esteja em desenvolvimento no mundo. A informação foi confirmada pelo presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Juarez Cunha, em entrevista pelo telefone.
Cunha também ressaltou que, como tem sido amplamente divulgado pela imprensa mundial, ainda não existe vacina contra o coronavírus. Há uma série de testes clínicos em andamento, mas nenhum concluído até o momento. Segundo a perspectiva mais otimista da comunidade médica, as doses para o combate à covid-19 estarão disponíveis dentro de um ano – esse prazo, contudo, pode ser maior.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Como verificamos
O Comprova consultou a Aliança ID2020 e a Sociedade Brasileira de Imunizações. Também pesquisou o histórico da Aliança Mundial para Vacinas e Imunização e da a2i (Access to Information, na sigla em inglês). Os links utilizados como fonte de informação estão ao longo do texto.
O que são as entidades mencionadas?
Aliança ID2020
O texto do blog “Livro das Revelações” apresenta a Aliança ID2020 como uma conspiração criada para inserir microchips no corpo das pessoas por meio da vacinação. Isso significaria que a população seria controlada “por meio de uma matriz de identificação global”. Nada disso faz sentido.
Na realidade, a Aliança ID2020 é um projeto anunciado em 2017 pelas empresas Accenture e Microsoft. Lançada como um consórcio público-privado em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU), a iniciativa busca atender o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável para 2030 de fornecimento de identidade legal a toda a população mundial.
De acordo com uma estimativa divulgada pela Microsoft em 2018, uma em cada seis pessoas no mundo não tinha qualquer forma de identificação oficial, dificultando o acesso a direitos humanos básicos, como saúde, habitação e educação.
Por e-mail, a ID2020 informou que o consórcio público-privado trabalha com ações de financiamento e suporte técnico de organizações não-governamentais, corporações e governos. O objetivo é ajudar a implementar soluções de identidade digital, sem qualquer relação com a implantação de microchips nas pessoas.
“Tipicamente, a identidade digital depende de telefones celulares como forma de autenticar a identidade do usuário”, afirmou a ID2020. “Os dados do usuário geralmente são armazenados em uma base de dados descentralizada, para garantir o máximo de privacidade e controle sobre as informações pessoais”.
A teoria conspiratória menciona de maneira descontextualizada três programas da Aliança ID2020 que são reais — nos Estados Unidos, na Tailândia e na Indonésia.
O primeiro é uma parceria com a prefeitura de Austin, no Texas, para fornecimento de identidade digital à população sem-teto. A proposta ainda está em fase inicial.
O projeto tailandês tem parceria com as organizações iRespond e Comitê Internacional de Resgate e tem como objetivo providenciar uma plataforma de identidade digital para os refugiados do acampamento Mae La.
Já na iniciativa na Indonésia, a ID2020 atua com a cooperação das organizações Everest e TNP2K, do governo local, para estabelecer um sistema de identidade digital para 6 mil famílias de baixa renda. Nenhum desses programas, contudo, prevê implantação de microchips.
A ID2020 também negou, por e-mail, que tenha qualquer relação com o desenvolvimento de vacinas. O único projeto da entidade relacionado ao assunto é em parceria com a Gavi (leia mais abaixo). “Nossa missão e mandato são bem delimitados, e não desenvolvemos ou participamos do desenvolvimento de vacinas”, informou.
Gavi
A Gavi foi criada em 2000 com o objetivo de imunizar pessoas sem acesso a vacinas em países pobres. Diferente do que é citado no texto, de que a Aliança Mundial para Vacinas e Imunização “contribuirá para a distribuição dessas supostas vacinas com microchips” com o governo de Bangladesh e outras organizações, esse não é o papel da organização.
A Gavi surgiu por iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates que, no final dos anos 1990, projetava que mais de 30 milhões de crianças poderiam estar em risco porque seus países não tinham dinheiro para a compra de vacinas. A ideia consistiu em reunir parceiros que pudessem financiar as vacinas e incentivar os fabricantes a reduzir os preços.
A aliança se tornou uma parceira mundial de saúde de setores privados e públicos. Hoje, a Gavi faz parte da Aliança Global de Força de Trabalho na Saúde (Global Health Workforce Alliance, em inglês) da Organização Mundial da Saúde, uma parceria que envolve governos, sociedade civil, instituições financeiras, pesquisadores e educadores e mobiliza recursos humanos para a saúde.
Bangladesh, citado no texto do blog “Livro das Revelações”, é um dos países contemplados pelo trabalho da Gavi. Em release divulgado pela Gavi em fevereiro, o país aparece como um dos beneficiados para receber doses de vacinas para imunizar crianças nos próximos seis meses. “Gavi financiará vacinas contra sarampo-rubéola para mais de 15,5 milhões de crianças menores de cinco anos. O governo de Bangladesh também apoiará a vacinação de mais 17 milhões de crianças até nove anos de idade”, diz a nota.
O governo de Bangladesh, a Gavi e a ID2020 também são parceiros para o fornecimento de uma identidade digital de saúde no nascimento ou na primeira imunização de crianças do país. Em contato por e-mail, a ID2020 explicou que o programa facilita os atendimentos médicos da criança e que isso continua pela vida toda.
De acordo com estimativa da entidade, em Bangladesh, apenas 20% das crianças recebem uma certidão de nascimento durante os primeiros cinco anos de vida, enquanto mais de 95% recebem pelo menos uma dose da vacina. O projeto prevê que profissionais de saúde, empregados por organizações comunitárias, facilitem a inscrição para “aumentar a porcentagem de crianças registradas, melhorar os resultados da vacinação e melhorar o acesso aos serviços de saúde durante toda a vida útil”, segundo informou a ID2020 em nota.
A2I
O A2i (Acesso à Informação), também mencionado no texto falso, é um setor do governo de Bangladesh que busca desburocratizar o acesso da população a serviços públicos. Em seu site oficial, menciona até mesmo o quanto as pessoas conseguem economizar em tempo e custos graças à iniciativa. Tudo é atualizado em tempo real e até a finalização do texto, já foram quase “2 bilhões de dias economizados”.
Outro citado na teoria conspiratória, Anir Chowdhury é consultor de políticas da a2i e realmente trabalha para o governo de Bangladesh. Porém, não é possível dizer que as falas atribuídas a Chowdhury na matéria falsa são realmente dele. Desde setembro de 2019, as mesmas declarações atribuídas a ele têm sido reproduzidas em sites não-confiáveis.
O Comprova questionou a a2i sobre as falas atribuídas a Anir Chowdhury, mas não teve retorno até o fechamento deste texto.
Viralização
O texto do blog “Livro das Revelações” obteve 3,8 mil compartilhamentos desde o dia 22 de março.
Projeto Comprova
Em expediente especial, a nova fase da coalizão do Projeto Comprova, composta por 24 veículos de comunicação brasileiros irá se dedicar a monitorar redes sociais e aplicativos de mensagens em busca de informações duvidosas sobre o coronavírus. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance. Este conteúdo foi investigado por Estadão, Uol e GaúchaZH e verificado por BandNews FM, SBT e A Gazeta.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GaúchaZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).