A esperança de ver a neve, o charme das roupas de frio, o aconchego da lareira, o vinho e as belas paisagens. Componentes que despertam o imaginário de quem busca o inverno da Serra Gaúcha para lazer e descanso. Só a Região das Hortênsias recebe 1,5 milhão de turistas na estação mais fria do ano. Pelo Vale dos Vinhedos, 415 mil visitantes passaram em 2017.
Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que os hotéis chegavam a fechar no inverno. Afinal, a Serra era um destino de veraneio. Visitantes de Porto Alegre e outras regiões do Estado subiam as montanhas atraídos pelo clima mais ameno e as belezas naturais dos rios e cascatas.
Famílias chegavam a passar férias de dois e até três meses na região, que também era tida como um local de ar mais puro e próprio para recuperção de doentes. Com isso, os primeiros hotéis apareceram nas décadas de 1910 e 1920. Em Canela, o primeiro trem de passageiros chegou em 1924. Por Caxias e Bento, passavam estradas que ligavam o Rio Grande do Sul ao resto do país.
Um dos construtores dos trilhos que ligaram Porto Alegre a Gramado e Canela, passando por Taquara, João Corrêa, que dá nome a ruas de diversas cidades nesse eixo, fundou em 1916 o Grande Hotel Canela, ainda hoje em atividade. Morador do Vale do Sinos, ele se mudou para a região em 1910.
O neto dele, Régis Danton Corrêa, 78, que dirige o empreendimento, conta como surgiu a ideia do hotel:
— Ao lado, já fez uma segunda casa para receber hóspedes. Aqui na região, ele tinha muito negócio com madeira, era amigo de políticos; e até mesmo para receber pessoas da família. E, com o tempo, a minha vó chegou e disse para ele "João, eu não aguento mais essa casa cheia de hóspedes, trata de fazer um hotel" — conta.
Para o diretor do Grande Hotel, os turistas começaram a ir à região no inverno a partir do momento em que os hotéis puderam se preparar.
— Quando começaram a surgir essas empresas que colocaram calefação e possibilitavam a gente colocar aqui uma grande caldeira - aqui, no caso, até movida a lenha - quando os hotéis começaram a oferecer condições para o pessoal vir para cá no inverno, é que houve esse desenvolvimento.
Essa mudança começou nos anos 60 conforme ele, o que coincide com a época em que foi construída a rodovia entre Porto Alegre e o litoral norte gaúcho, quando turistas da Capital e região metropolitana passaram no verão a se deslocar cada vez mais para as praias.
As hortênsias, por sinal, abrem no verão, e eram plantadas para substituir vegetação nativa retirada de áreas de encosta, para prevenir erosão. O imigrante alemão Oscar Knorr, nos anos 1940, mandou plantar flores em um grande terreno em Gramado, que virou parque. Anos mais tarde, elas inspiraram a Festa das Hortênsias no mandato do primeiro prefeito da cidade, Walter Bertolucci. É o que conta Iraci Casagrande Kopp, 86, rainha da primeira das 12 edições da festa, em 1958.
— E aquilo chamava atenção dos jornalistas que vinham aqui para a Serra. O prefeito, depois de ver a cidade recém fundada, que ele não conseguiu fazer que fosse atraente, como queria, pensou em capitalizar essas hortênsias e fazer uma festa — relembra.
Iraci vai lançar em novembro um livro intitulado "O Lago, as Hortênsias e o Turismo". Para ela, os eventos definiram Gramado como potência turística: além da Festa das Hortênsias, o Festival de Cinema - realizado desde 1973 e primeiramente no verão, a partir de 1988 no inverno e, desde 1992, sempre em agosto - e o Natal Luz.
Para a professora Suzana Gastal, do curso de turismo da UCS, o Festival de Cinema no inverno também se tornou um indutor do turismo no frio na Serra porque as imagens de atores com roupas elegantes circularam pela mídia em todo o país. Ao mesmo tempo, o enoturismo se popularizava ao redor do mundo. A Vinícola Valduga foi pioneira em abrir à visitação de forma profissional, e em 1992 passou a hospedar turistas em sua pousada no local. Hoje, cerca de 90 vinícolas abrem ao público na região uva e vinho.
Conforme Tarcísio Michelon, empresário da rede hoteleira Dall'Onder, acolher viajantes é uma característica do Vêneto, na Itália, de onde veio a maior parte dos imigrantes da região. Ele recorda que houve um período de baixa entre os anos 60 e fim da década de 80, quando surgiram estradas para o litoral e a região se voltou mais para a indústria. Nos anos 80, depois de sete anos na Suíça, retornou com ideias para o turismo, como o roteiro Caminhos de Pedra, do qual foi um dos idealizadores.
A mãe dele, Josefina Cassol Michelon, que foi hoteleira entre os anos 1940 e 1950, aconselhou o filho sobre o que os turistas gostavam: a cultura local.
— Desde as primeiras experiências apresentando corais, apresentando grupos de folclore gaúcho, vi que era o que o turista amava. E orientamos exatamente o nosso turista para a nossa colônia, para o nosso interior, onde tem natureza, tem beleza, e as nossas tradições — diz Michelon.
Ivane Fávero, consultora em turismo e ex-secretária municipal do setor em Bento Gonçalves e Garibaldi, afirma que não é necessariamente um segmento específico, como "uva e vinho" ou roteiros turísticos que vão atrair os visitantes de lazer, mas sim o que é característico do território, a "alma" do lugar.
— Ele já percebeu que hoje a sua motivação de vida, mais do que ter patrimônio tangível, é viver experiências significativas. Ele já entendeu que não vai levar riqueza para o túmulo. E, também, ele vem para se descontaminar, reequilibrar, de uma vida um tanto quanto desequilibrada, sufocante, das grandes cidades. Com insegurança, sem contato com a natureza, vivendo em ambientes fechados, estressantes. Então, ele vai em busca do oposto — analisa.
Em Caxias do Sul, Guadalupe Pante observa esse movimento. Junto com a mãe, Claudia Traslatti, ela administra a Casa Verde, que organiza caminhadas, rapel e arvorismo na região dos campos de Criúva, em Caxias, onde há um grande atrativo natural, o Cânion Palanquinho. Uma das caminhadas é noturna, com jantar oferecido no meio da mata para lembrar o tropeirismo.
— Acho que essa formação de grupos que tem acontecido na região aqui de Caxias para pedalar ou caminhar está fazendo com que as pessoas queiram sair com grupos diferentes e se conhecerem na atividade, no caminho — observa.
Em Garibaldi, Ana Cláudia Mutterle Chiesa, 26 anos, e Damian Paulo Chiesa, 34, casal que nasceu na área urbana, abriu em 2016 a propriedade rural onde mora, o Sítio Crescer, para visitantes em um formato de hostel, na Rota dos Orgânicos.
Essa modalidade de hospedagem oferece quartos compartilhados com preço menor, além de quartos para casal e cozinha de uso comum. Na propriedade, os turistas podem colher o que vão comer nas hortas e são organizados passeios na área, que chamam de "Sítio Tour".
A hospedagem tem capacidade para até 50 pessoas. O casal recebe muitas famílias. Eles contam que de um ano e meio pra cá, passaram a receber também viajantes muitas vezes solitários, de diversas partes do mundo, após a visita de um turista de São Paulo.
— Ele veio com um motorhome, só que era um carro, com uma barraca em cima. E ele fez uma divulgação do sítio numa rede social de viajantes que trazem essa proposta. Então, já veio gente da Alemanha, da Bélgica, de Portugal — comenta Damian.
Segundo o casal, o frio do inverno tem mais apelo que o verão. O pinhão, a lareira e os vinhos estão entre os itens que despertam esse interesse. Damian inclusive faz o sapeco do pinhão para os hóspedes com os ramos secos de araucária.
— Tem os pinheiros, e a gente faz o pinhão ao vivo, na hora ali, com a própria grimpa. Faz uma pinholada.
Ivane Fávero comenta que os hostels não são procurados só pelo preço menor, mas também pela acolhida e possibilidade de conviver com pessoas de perfil semelhante e que podem se tornar companheiros de exploração do lugar.
Hospitalidade também está presente na área urbana de Caxias. Há quase dois anos, Rogério Cordeiro da Cunha, 42, decidiu anunciar os cômodos que já alugava para viajantes na rua Feijó Júnior próximo à Matteo Gianella, em uma plataforma mundial de reservas de hospedagem. Assim, nasceu o hostel Casa do Rogério, que hoje abriga até 40 pessoas.
A maioria dos hóspedes vem a Caxias a trabalho e uma menor parte a lazer. Destes, boa parte vem no inverno, já que julho é um dos meses de maior procura, além de dezembro. Além do preço mais acessível, outro atrativo é a proximidade de destinos como Gramado e Canela. Quando recebe turistas de longe e o hostel tem poucos hóspedes, Rogério os leva para passear em lugares de Caxias. Foi o caso de um casal de baianos que telefonaram perguntando o que podiam fazer por aqui e Rogério recomendou os morangos hidropônicos do Barlavento, o que convenceu o casal a vir.
— Tanto que eu levei eles lá. Aí trouxe uma amiga minha que dirige Uber e falei: "vem aqui, vamos levar um pessoal para lá". A gente levou, e o êxito da viagem deles foi ir pra lá. Então, coisas assim acontecem. As pessoas procuram muitas coisas simples. Não sofisticadas. Eu, quando viajo, busco coisas simples também — reflete.