Deixei no canto da memória — e do lugar onde guardo anotações, impressões, imagens _ uma viagem do ano passado. Ela despertou dali quando recebi o aviso de que, em outubro, Morro Reuter celebraria uma festa para a lavanda. E me transportei de novo para aquele lugar, revisitado em 2016, e onde tinha estado pela primeira vez 20 anos antes.
Da minha estreia em Grasse, no sul da França, conhecida como a terra do perfume, lembrava de uma visita guiada a uma indústria de essências e de duas informações: a de que o cargo de mestre perfumista se chama "le nez" (o nariz) e da quantidade de aromas diferentes que um especialista treinadíssimo saberia identificar/distinguir e que me impressionou — 500 deles, disse o meu guia, quando na época se considerava que o ser humano era capaz de identificar 10 mil cheiros diversos, o que uma pesquisa mais recente, da última década, ampliou para 1 trilhão.
Mas não é de ciência que eu quero falar, e sim da segunda viagem a esse mundo aromático que fiz, desta vez provocada por uma sobrinha perfumista. Desembarcamos em Grasse um pouco antes da floração da lavanda, o que foi um pouco frustrante, pois de novo não teria aquela visão dos campos dos meus sonhos. Em compensação, já tínhamos agendado, via online, uma oficina em uma das mais tradicionais fábricas de lá, a Galimard, além de passagens por outras perfumarias (duas gigantes são a Fragonard e a Molinard, mas há cerca de 60 delas, empregando mais de 3 mil pessoas) e ao Museu Internacional do Perfume.
Grasse é uma cidade medieval, ao sul da França, a cerca de uma hora das mais famosas Nice e Cannes. Fica encarapitada numa montanha, tem ruelinhas por onde é fácil se perder e uma grande comunidade de imigrantes. Não é tão charmosa quanto suas vizinhas, mas tem alguns bons restaurantes, mais difíceis de encontrar abertos se, como no nosso caso, se estiver ali no início da semana.
Há também quase duas dezenas de jardins belíssimos para se conhecer (nesse caso, opte pelo passeio na temporada primavera/verão). Como grande parte das ruas é (muito) íngreme, a não ser no centro, onde estávamos, optamos por nos deslocar de ônibus para as visitas às perfumarias e aos locais de interesse mais distantes, incluindo uma ida a Cannes (os ônibus são ótimos, limpos, com indicação digital das paradas e do tempo de viagem, além de as pessoas serem muito dispostas a ajudar).
E como o assunto aqui é perfume, vou destacar só duas das visitas, lembrando que Grasse é considerada há mais de dois séculos como a capital mundial do perfume, que há produção de muitas outras flores usadas na indústria — como a rosa-de-maio e o jasmin —, ainda que a lavanda seja a mais conhecida, e que o emblemático Chanel nº 5 nasceu por aqui. Confira.
Fazer o próprio perfume
Nunca pensei em produzir meu próprio perfume e, desde já, alerto: o resultado não foi lá essas coisas. Não basta escolher nossos aromas preferidos e misturá-los, ainda que com o apoio de um mestre perfumista e a colaboração da minha sobrinha, também formada em perfumaria. Nem sair dali com o diplôme d'élève-parfumeur (o diploma de estudante perfumista). O que deu para perceber, naquelas duas horas de duração da oficina, é que é preciso muito mais para criar as fragrâncias pelas quais nos apaixonamos.
No Studio des Fragrances da Perfumaria Galimard, onde fizemos a nossa, é possível optar pela orientação em um dos sete idiomas (não há português, mas italiano, nossa opção, e inglês). Por 49 euros por pessoa, você recebe as noções básicas sobre como compor um perfume, misturando fragrâncias com "notas de cabeça/saída, coração/corpo e de base/fundo" nas quantidades adequadas.
Não há dúvidas de que, como eles dizem, se sairá dali com um produto exclusivo: diante de si, sentado em frente ao "órgão de perfumista", você terá à disposição 127 essências para tentar compor uma mistura harmoniosa. Mais: a fórmula que criar será guardada num arquivo confidencial para, se quiser, a qualquer momento, solicitar um "carregamento" do seu perfume. Considerando que a Galimard está por ali desde 1747, é bem provável que sua criação estará protegida pelo resto da sua vida.
No final, pelo valor pago, você receberá um frasco (se escolher um mais sofisticado, pagará um pouco mais) de 100ml com o seu perfume e o diploma mencionado. O frasco ganha um rótulo e o nome de sua preferência — por falta de imaginação ou egocentrismo, dei o próprio nome ao meu. Vem ainda a recomendação para que o deixe em repouso por um mês. Minha criação está armazenada há um ano e, reconheço, até melhorou com o tempo. Vou deixá- la descansando mais um pouco para, na pior das hipóteses, como me sugeriram, transformá-la em aromatizador de ambiente. Mas é divertido saber que tenho lá uma fórmula só minha.
Como agendar: há oficinas todos os dias, com agendamentos individuais ou em grupo (máximo de 30 pessoas por sessão, mas com atendimento personalizado), com duração de duas horas. O valor é de 49 euros por pessoa.
Conhecer a história
No grande prédio amarelo do centro da cidade, a história do perfume e da perfumaria é contada de forma cronológica no Museu Internacional da Perfumaria (MIP) — passando da Antiguidade para a Idade Média, a Moderna e a Contemporânea, com toques de interatividade e provocando o visitante a apurar seu olfato, como é de se esperar numa atração do gênero.
O museu foi criado em 1989 e depois renovado para se adequar e provocar esse mundo de sensações que vão além de mostrar como é produzido o perfume e de apresentar embalagens e frascos, cosméticos em geral e tendências de todas as épocas. Também fala da globalização do perfume, dos novos mercados e do marketing. É ainda uma boa mostra antropológica, passeando por costumes e hábitos como os de higiene (num dos episódios da ótima série Mr. Selfridge's, me chamou atenção quando, na distribuição da loja de departamentos londrina, eles revelam que o setor de perfumaria ficava no térreo, junto à rua, para disfarçar o mau cheiro produzido pelos excrementos dos cavalos).
Voltando ao museu de Grasse: são mais de 50 mil objetos, com curiosidades como uma máquina de incenso japonesa, um antigo "órgão de perfume" e até uma maleta de viagem de Maria Antonieta, a controvertida e guilhotinada rainha francesa no século 18.
Numa área externa do prédio, um pequeno jardim nos leva a experimentar/cheirar algumas das plantas responsáveis por criar esse universo de aromas. Como estava acompanhada de minha própria perfumista, não considerei a visita guiada de cerca de 1h30min, que pode ser interessante, já que o museu não é pequeno. Como em todos os museus (e nas perfumarias), o passeio acaba na lojinha. Não comprei perfumes nem sabonetes, mas cartões com rótulos antigos ainda não emoldurados.
Abre todos os dias (exceto em 1/5, 25/12 e 1/1). De maio a setembro, das 10h às 19h e, de outubro a abril, das 10h às 17h30min. Custa 4 euros (ou 6 euros durante as exposições temporárias) e tem tarifas reduzidas e um programa de gratuidades (consulte no site).
Para quem quer se especializar
No Instituto Grasse de Perfumaria há cursos de perfumes para vários níveis, incluindo imersões de nove meses para as quais são aceitos apenas 12 alunos por ano, ao custo de 12,9 mil euros (as seleções ocorrem em janeiro e julho).
Saiba também
Em dezembro de 2016, abriu as portas em Paris o Le Grand Musée du Parfum (na Rue du Faubourg Saint Honoré), um museu interativo, com vídeos, experiências sensoriais e a história do perfume, desde o Egito até o início da descoberta da arte da perfumaria na França.
E um restaurante em Grasse
Não lembro o motivo pelo qual escolhemos o La Licorne (5 Chemin du Cabanon, em Chateauneuf de Grasse) para o nosso primeiro jantar na cidade. Considerando a localização do nosso hotel, não era uma boa ideia (o táxi acabou custando quase tanto quanto a refeição), mas ele acabou entrando na lista dos inesquecíveis. O início foi meio conturbado, já que eles não falavam uma palavra em inglês e nós, quase nada em francês. Fomos tateando pelo cardápio e não nos decepcionamos. O lugar é da categoria simplérrima, mas a comida, da entrada à sobremesa, deliciosa. Do tipo que dá para recomendar.