O sol deixava as nuvens encabuladas com seus tons avermelhados quando deixamos Buenos Aires naquele domingo. Era fim de tarde, e o avião abandonava o solo portenho enquanto a capital argentina se debruçava sobre as margens do Rio da Prata. Completávamos 48 horas que pareciam muito mais longas que apenas dois dias.
Antes de deixar a cidade que nos acolheu entre suas avenidas, estávamos perambulando pela Rua Defensa, que nos guia por meio de uma overdose de antiguidades, bares e curiosidades, emoldurados pela arquitetura de um dos bairros mais antigos da cidade. Em San Telmo, caminha-se da Plaza Dorrengo até a Plaza de Mayo, encanta-se com um pequeno show de tango e diverte-se com um personagem borracho que ganha vida nas mão de seu marionetista.
Entre diversas coisas incríveis como a banca só com brinquedos do passado, o colecionador de bonequinhos de guerra, os lustres refletidos em espelhos antigos, perto do músico e no meio dos turistas, está a carismática Mafalda. Eternizada pelo traço de Quino na década de 1960, a menina que colocava o mundo no divã, espera sentada para uma fotografia na esquina com Rua Chile.
Naquele domingo, após uma noite chuvosa, a Avenida 9 de Julio - dia da independência do país, conquistada em 1816 - poderia ser um cenário inspirados para Quino. Próximo ao Obelisco, marco de 400 anos da cidade, um senhor apressa o passo para cruzar as cinco faixas da avenida, uma das mais largas do mundo. Enquanto apoia a bengala com a mão esquerda, a direita usa uma esponja grossa para limpar os faróis dos carros parados no semáforo. Tudo a troco de pesos que, com a economia inflacionada, valem centavos de real.
Mas há quem explore bem a força da moeda estrangeira. O melhor exemplo, e que tanto contrastou com a verdadeira Buenos Aires, são as casas de show de tango. O programa é um espetáculo por completo, com passos ousados e sensuais de bailarinas e bailarinos esculpidos como manda a cultura da beleza. Luzes e interpretações para entreter uma plateia de maioria brasileira.
A noite da chegada
No hotel, apenas chegamos e deixamos as malas. O trajeto do Aeroporto Ezeiza até o Centro é longo, mas a conversa com o motorista Alejandro ajudou a passar o tempo e afinar o portunhol. Do avião, quando percebemos que sobrevoávamos o Rio da Prata, deu-se início ao pouso em Buenos Aires. Eram quase 18h de uma sexta-feira quando chegamos à capital argentina.
A noite, nossa primeira em Buenos Aires, encerrou-se na sorveteria Freddo que nos saboreou com a sobremesa após um jantar farto e barato - principalmente devido ao câmbio da moeda - em bar, com mesas estendidas pela praça no bairro da Recoleta. O atendimento foi muito bom, sem garçom puxa-saco, simples, rápido e eficiente. No Brasil, onde ouvimos tantas reclamações sobre o atendimento portenho, é apenas diferente.
Antes de jantar, cansamos as pernas em uma caminhada pela Recoleta à noite. Observamos os bares agitados, os portenhos passeando com suas famílias e cachorros depois do expediente, os muros intrigantes do cemitério.
Cruzando a cidade
No El Caminito, uma passagem rápida. Vale a pena para quem ainda não conhece, mas as duas ruas que passam pelas casas coloridas estão voltadas demais ao turismo. Convites não faltam para se sentar a um restaurante, os passistas de tango aguardam colaborações para dançar e os suvenires eram mais caros do que em outros lugares. Ainda no bairro La Boca, está o estádio do clube Boca Juniors, La Bombonera - com mais tempo também vale a visita.
Antes, almoçamos em Puerto Madero, um porto para navios cargueiros, que não atracavam porque o canal era raso. A aérea foi revitalizada e se tornou cartão-postal. Atravessamos a Puente de la Mujer e ficamos pelos diques. O lugar é lindo para caminhar ou pedalar. Até ali chegamos caminhando abraçados pelas ruas do Centro da cidade.
Na Plaza de Mayo vimos um artista riscar a arquitetura portenha na sua tela e conhecemos a Catedral Metropolitana que abriga o túmulo de José de San Martin, libertador da Argentina, Chile e Peru.
Cruzamos o calçadão da Rua Florida onde visitamos uma filial da livraria El Ateneo - a maior e famosa loja da rede está próximo na Avenida Santa Fé. Até a Florida, viemos pela Avenida Corrientes, outra rua famosa pelo seu grande movimento e negócios. E naquela manhã de sábado começávamos a conhecer a cidade a partir do Obelisco, no meio da 9 de Julio.
O charme da Recoleta
Ao lado da Avenida Libertador, em frente ao Museu Nacional Belas Artes (que também vale a visita, em uma programação com mais dias), ciclistas paravam para ver, crianças e senhores dançavam, e diferentes ficavam entre iguais ao som do canto gaudério retratando histórias das planícies argentinas. O gaiteiro dedilhava o acordeão, que chorava e se alastrava ao ritmo do violão e do violoncelo. Ao fundo, as pétalas de aço da escultura em forma de flor gigante com 23 metros de altura refletiam as cores de um dos bairros mais charmosos da capital.
Sentados nos gramados verdes da primavera, namorados e amigos tomam mate enquanto acompanham o show do artista mais próximo. Rock, folk, tango, ou jazz. O verbo corre solto entre sorrisos, versos e aplausos. A sorveteria Freddo, uma das melhores da cidade, vende seus cremes de doce de leite, chocolate ou frutas. Basta um instante daquela profusão de sons, cheiros, temperatura e texturas para aguçar os sentidos.
No Cementerio de la Recoleta, com portões e estátuas que nos deixaram intrigados à noite, revela-se cheio de vida durante o dia. Entre os mausoléus, aquele que abriga Evita Perón é um pretexto para se perder nos corredores estreitos que levam a diversos pátios mais amplos e que parecem cenários para uma cena de suspense. Gatos perambulam por toda a parte no cemitério que não tem o peso triste da morte e vive embalado pela vida que vibra ao seu redor.
Até a Recoleta, chegamos de táxi. Os taxistas com seus carros negros e amarelos não corresponderam a má fama das pesquisas e blogs sobre Buenos Aires. Disseram para ter atenção com notas faltas e trajetos exageradamente longos. Foram oito viagens de táxi e nenhum problema, pelo contrário, muita prosa, dicas e histórias.