O comerciante Nilton Medeiros, 44 anos, nasceu em Torres e mora no centro de Capão da Canoa, mas quando chega o fim de semana ele apanha o carro e percorre 160 quilômetros em direção ao sul, incluindo um largo trecho pela beira da praia, para veranear. A paisagem de dunas é tão extensa e selvagem que às vezes ele nem consegue achar o lugar certo. Passa quilômetros e tem de voltar atrás. Para ajudar na localização, colocou uma boia em cima de um poste à beira dos cômoros. Ali atrás, a dezenas de quilômetros de qualquer área urbanizada, em algum ponto do município de Mostardas, fica a casa de alvenaria que ele construiu para curtir a praia com a esposa.
– Não suporto aquele tumulto de Capão. Moro na Avenida Paraguassú e passam aquelas motos fazendo barulheira. Eu gosto é deste deserto. Aqui não tem ninguém para incomodar. Só se ouve o ruído da grama crescendo – diz.
Nilton veraneia em uma região que é quase como um segredo da costa gaúcha. Todo mundo conhece a aglomeração urbana do Litoral Norte, demarcada por lei, com suas dezenas de praias enfileirando-se uma ao lado da outra, desde Torres até Quintão. Na outra ponta, de Rio Grande para baixo, fica o também célebre Litoral Sul, de praias movimentadas como Cassino, Hermenegildo e Barra do Chuí.
Entre uma coisa e outra, no entanto, há 250 quilômetros de uma costa desconhecida da maior parte dos gaúchos, pontuada por pequenas praias com arruamento de areia, muito distantes umas das outras, afundadas na duna. Os acessos a esses balneários costumam ser precários, sem pavimento, e os frequentadores consistem principalmente em moradores de cidades próximas, como Mostardas, Capivari do Sul e Tavares, ainda que gente de longe também apareça em busca de mar e sossego. A principal estrada é a beira da praia. É um litoral muito distinto daquele que entope as rodovias a cada fim de semana e feriado.
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– Isso aqui não é nem Litoral Norte, nem Litoral Sul. É uma outra coisa – garante Nilton.
O morador de Capão da Canoa, comerciante de materiais de construção, conheceu esse mundo quando foi fazer uma entrega em uma obra. Ficou impactado e resolveu construir na zona uma casa de praia, com janelas que dão para dunas a perder de vista. A eletricidade vem de um gerador e a água é de poço, mas o que chama a atenção é o chuveiro. Nilton instalou um botijão de gás no boxe, para alimentar uma chama que ele acende acima da cabeça, junto à saída de água. O fogo aquece um radiador de moto acoplado ao chuveiro, garantindo banho quente.
Já o celular pega só num local muito específico. Se precisa falar, Nilton não pode nem levá-lo ao ouvido. Tem de deixá-lo no ponto exato e acionar o viva-voz.
– Para sobreviver aqui, o cara tem de trazer tudo de fora. Mas é muito bom. Todo amigo que eu trago quer voltar.
Nilton não é um misantropo esquisitão com ganas de ser diferente. Há mais moradores de praias famosas que preferem veranear na zona, às vezes considerada uma mera extensão do Litoral Norte, noutras referida como Litoral Médio ou então definida apenas como "limbo". Em um domingo de janeiro, mais algumas dezenas de quilômetros ao sul, solitários na imensidão de areia à beira-mar, estirados em cadeiras de praia colocadas dentro de um arroio de águas cristalinas, com lambaris a nadar ao redor das pernas, havia outra família de Capão. Claiton dos Santos Souza, 43 anos, a mulher, Ronésia, 47 anos, e o filho, Kauã, nove anos, haviam vindo na véspera da metrópole praiana e voltariam no fim do dia.
A família mantém uma casa de veraneio em São Simão, uma das praias mais encorpadas da região, mas gosta de se afastar para zonas de isolamento ainda maior, como a do arroio onde estavam.
– Temos casa aqui porque isto é o paraíso. Dá para curtir a praia. Tanto que a gente roda 200 quilômetros para chegar – diz Ronésia.
Claiton concorda:
– Quinze minutos atrás, eu estava tomando banho de mar. Se me perguntarem qual foi a última vez que entrei no mar em Capão, não lembro. Faz muito tempo. Em Capão não se descansa. É muita gente vendendo coisa na beira da praia.
Da Solidão ao Balneário Mostardense, o que conta é a tranquilidade
Nos 130 quilômetros entre Torres e Quintão, que chegam a reunir mais de 700 mil pessoas em dias de verão, há 224 guaritas de salva-vidas, o que dá mais ou menos um posto da Operação Golfinho a cada 600 metros. Depois disso, é preciso percorrer 40 quilômetros para encontrar a guarita 225, na primeira praia mais ao Sul, Solidão, junto ao Farol da Solidão.
Chega-se lá por uma estrada de areia meio escondida e sem sinalização, que parte da BR-101 e avança nove quilômetros até desembocar no mar. Um dos responsáveis por garantir a segurança dos banhistas no balneário é o PM Vinícius Fetter Arones. Morador de Ijuí, ele tem três participações na Operação Golfinho, todas na Praia da Solidão. Desta vez veio de moto, numa viagem de oito horas, com a bagagem pendurada na garupa.
– Viajei cheio de mala. Parecia que estava vindo do Paraguai – brinca.
Arones cuida da única guarita em um trecho de aproximadamente 80 quilômetros. Durante a semana, há apenas cinco ou seis famílias por quem ele tem de olhar. No sábado e no domingo, o movimento aumenta, com a chegada de banhistas da Região Metropolitana.
– Tem pessoas que compram aqui porque os terrenos são bem baratos. Eu fico um pouco isolado. Se precisar de banco, tenho de andar uns 50 quilômetros, até Palmares do Sul ou Quintão – conta o salva-vidas.
Entre as pessoas sob os cuidados de Arones encontrava-se Sônia Oliveira Fogaça, 52 anos, fazendeira em Mostardas. Sônia tem casa na Solidão por ser a praia mais próxima da sua propriedade rural.
– É bem longe de tudo e não é uma praia conhecida. Falta bastante coisa, não tem calçamento. Mas é uma praia mais limpa e preservada – comenta.
Cirineu Silveira, 36 anos, agricultor em Palmares do Sul, é veranista da Solidão há 10 anos. Ele enxerga vantagens no isolamento e na estrutura simples.
– Não é como as outras praias, que têm shoppings, lojas, essas coisas. O pessoal vem para relaxar. É uma praia pouco divulgada na mídia, falam mais de Tramandaí e Cidreira, mas para nós isso é bom. Fica mais restrito.
Da Solidão até São Simão, a praia seguinte com guarita de salva-vidas, são 36 quilômetros. Entre uma e outra, há a natureza: amplidões de dunas, vegetação, arroios de água límpida, lagoas, bandos com milhares de pássaros. E também um navio encalhado e virado a poucos metros da praia, com a ferrugem já coberta de limo, e muitos animais mortos na areia: tartarugas, baleias, golfinhos, peixes grandes e pequenos.
São Simão tem dois mercados, um posto de saúde para as situações básicas e pouco mais do que isso. Pensaram em colocar uma linha de ônibus até a praia, mas os veranistas se opuseram, para manter a privacidade.
Dezesseis quilômetros adiante, para o sul, fica uma praia ainda menor, Pai João, que poderia até passar despercebida por quem vem pela areia, não fosse a presença de uma estaca indicativa, cravada junto às dunas.
Pai João se circunscreve a umas poucas ruas de grama. Não tem salva-vidas nem estrada. O único acesso é pela beira da praia. Dependendo das condições da areia, não dá para chegar.
– Já aconteceu de a maré subir e não ter como sair daqui. Aí, precisa esperar. Por isso, tem de trazer bastante comida e cachaça. Tenho uns 300 litros de cachaça aqui – brinca o veranista Alcides Pedroso, 60 anos, que vem de Portão, a 250 quilômetros de distância e três horas e meia de viagem.
Mais uma dezena de quilômetros ao sul fica o Balneário Mostardense, o maior da região. É a praia mais próxima de Mostardas, então atrai principalmente os moradores do município. Mas também tem veranista de longe, como Janice Tondin, 42 anos, de Gravataí. Dias atrás, ela fez com a família a viagem de três horas e meia até a casa do pai no balneário. Depois de passar por Mostardas, encarou os 12 quilômetros até a praia, por uma estrada de areia que em alguns pontos tem dezenas de metros de largura e se confunde com as dunas.
– Para passar pela areia fofa, eu vim à toda. Nas curvas, chegava a ir de lado. Meus filhos só gritavam: "Mãe, não quero morrer!". Foi tri – conta Janice.
Ela veraneia todos os anos no local. Diz que ultimamente tem mais gente, mas que até um tempo atrás o movimento era tão pequeno, na praia, que costumava fazer topless.
– Aqui dá para vir gorda, com celulite, que ninguém nota.
Janice já andou por praias do norte, como Torres, Capão, Tramandaí. Também esteve no Cassino, no Litoral Sul. Balneário Mostardense não lhe lembra nenhum dos dois extremos do litoral gaúcho:
– Capão, Torres, lá é ostentação. Do Cassino eu não gostei. A cidade tinha lixo, cheiro ruim. Aqui é um lugar mais tranquilo, com um povo mais simples.
Depois de Balneário Mostardense, a coordenação da Operação Golfinho no Litoral Norte ainda mantém uma guarita de salva- vidas em Tavares. A partir de São José do Norte, a coordenação é do Litoral Sul. São mais três guaritas no município. Ao todo, o extenso Litoral Médio soma sete pontos de banho protegido.
Região preserva ecossistema costeiro
Por ser pouco urbanizada, a vasta área entre as partes mais movimentadas do Litoral Norte e do Litoral Sul preserva um ecossistema costeiro de enorme importância. Vivem ou passam por lá espécies expulsas de outras paragens, como o tuco-tuco, corujas, sapos, tartarugas marinhas e de água doce, capivaras, lagartixas-das-dunas, jacarés, lobos-marinhos, lebres.
Há ainda mais de 40 tipos de aves, como o maçarico-do-papo-vermelho, que todos os anos faz uma das mais extensas migrações conhecidas: vem da tundra canadense, no Ártico, para o sul da América do Sul. Depois de se alimentar por aqui e acumular energia, retorna para se reproduzir. É uma espécie ameaçada de extinção, que depende da preservação do litoral para continuar existindo.
O problema é que em outras partes da costa, principalmente no aglomerado urbano do Litoral Norte, a presença humana elimina uma das principais fontes de alimento para as espécies que habitam a região. Pisoteados pelos humanos, tatuíras e outros invertebrados sumiram das zonas mais movimentadas. Outra dificuldade é a poluição. Muitas tartarugas, para dar um exemplo, morrem por ingerir plástico que chega ao mar.
– À medida que a urbanização diminui esses habitats, essas espécies ficam em risco – afirma Ignacio Moreno, professor do departamento de zoologia da UFRGS e pesquisador do Ceclimar.