O Litoral Norte começa com um paliteiro de edifícios em Torres e se estende para o sul na forma de dezenas de balneários enfileirados lado a lado, com apenas um ou outro trecho deserto. Vem Capão da Canoa, vem Xangri-lá, vem Imbé, vem Tramandaí. A altura dos prédios começa a cair. Vêm Cidreira, Pinhal, Magistério. A Interpraias vai piorando, até acabar. Depois há Quintão, e o asfalto dá lugar a uma rua de calçamento irregular, que se estende por praias modestas e obscuras. Vem Rei do Peixe, vem Frade, vem Santa Rita.
E então, de repente, 140 quilômetros depois de Torres, a rua acaba. Acabam também os postes e fios de eletricidade. Adiante, por muitos quilômetros, não se vê nada, apenas a imensidão de areia a perder de vista. Ali fica Dunas Altas, a última praia.
No balneário de 170 casas, cercado de areia por todos os quadrantes e dominado por um farol, o comércio limita-se a um bar e restaurante, a guarita de salva-vidas mais próxima fica a quilômetros de distância, o celular só pega com sorte e não há transporte público para chegar ou ir embora. Nesse recanto ornamentado por uma natureza mais próxima do estado selvagem, exercita-se um tipo de veraneio bem diferente daquele conhecido pela maioria dos gaúchos.
–Aqui é onde o vento faz curva. Ele bate no fim da estrada e dobra – brinca o veranista Zeferino Custódio Neto, 63 anos, que tem casa em Dunas Altas há quase duas décadas.
O fim brusco da urbanização passa mesmo essa ideia. Dunas Altas termina em uma rua perpendicular ao mar, que marca uma espécie de fronteira entre o veranismo de massas e a natureza. A partir dali, começa um mundo distinto, feito de cômoros muito altos e vegetação. Há só esparsas cabanas de pescadores até o Farol da Solidão, 35 quilômetros à frente. Na área deserta, a apenas algumas centenas de metros das últimas casas, já corre um riacho de águas límpidas e transparentes, e ao longo de todo o seu curso é possível contemplar pequenos peixes agitados.
As aves estão presentes em uma quantidade e variedade que não se costuma encontrar nas praias mais ao norte. Na manhã da visita de Zero Hora, a faixa de areia, onde não se encontrava um único banhista, estava tomada por centenas de pássaros negros. Nas imediações, outras espécies, de variadas cores e plumagens, incluindo corujas, voejavam ou repousavam sobre as dunas. A variada fauna da região transborda com frequência para o balneário. Os veranistas relatam contatos frequentes com caranguejos, tartarugas, pererecas, jacarés e até cavalos selvagens, que andam perdidos no meio das dunas e das lagoas.
– Aqui também dá bastante sapo, um sapo bem grande e bem gordo. No outro dia, tinha uma tartaruga atravessando minha rua. E também já vi lobo marinho por aqui – conta a veranista Jussara Vidal, 65 anos.
Jussara veio pela primeira vez há 17 anos, quando Dunas Altas era apenas um punhado de cabanas. Depois, comprou uma casa de um quarto. Agora, transferiu-se para uma das maiores residências do balneário, quase solitária num quarteirão descampado.
– Na primeira vez que vim, tinha um restaurante com vista para o mar. Olhei aquela praia linda e disse: é aqui. Fico sempre janeiro, fevereiro e, se der, março. Gosto por causa do descanso. É muito relaxante. Mas tem de trazer tudo de casa, porque, se precisar comprar, só indo a Quintão ou Pinhal. É praia para gente de mais idade. Jovem sem carro não vai gostar – comenta.
Outro fã é Carlos Roberto Pinheiro, 66 anos. Ele já veraneou por todo o litoral gaúcho e também em Santa Catarina, cada ano num lugar, mas um dia fez um passeio de dindinho com a mulher, Aura, 54 anos, e conheceu Dunas Altas. Encantaram-se e resolveram comprar uma casa, há sete anos.
– Quando vimos isso aqui, nos apaixonamos. É um paraíso. A gente pode dormir até de porta aberta, que ninguém mexe em nada.
Durante o verão, Pinheiro se divide entre Alvorada, onde reside, e a praia, mas a mulher vem para Dunas Altas em dezembro e só sai em março. Quando o marido está na cidade, ela sabe que é complicado manter contato: é preciso achar algum ponto, talvez no alto de uma duna, onde apareça sinal de celular. Aura também fica sem carro, ou seja, não tem meios para deixar o balneário.
– Sabe como eu faço se meu marido não está e preciso comprar alguma coisa? Não faço. Espero ele vir – diz.
Os veranistas se ressentem que o serviço de dindinho tenha sido interrompido há alguns anos e que a pouca quantidade de gente não justifique a presença de uma guarita de salva-vidas. Também gostariam de ter à mão um mercadinho e algum outro comércio. Mas a falta dessas comodidades tem seu charme.
– Essa coisa de mato, de rio, lembra os veraneios de quando eu era pequeno – evoca Ricardo de Freitas Opitz, 53 anos.
A praia também atrai alguns novatos desavisados, que podem ser encontrados em dois pequenos pavilhões com espaços para alugar. No corredor entre eles, era possível encontrar, sentada em uma cadeira de praia no dia em que comemorava seu aniversário de 45 anos, a professora Maria Dolores de Vargas. Ela foi parar em Dunas Altas porque a filha e o genro, policiais militares, estão de serviço em Quintão. Ficou surpreendida com o que encontrou.
– Normalmente, eu veraneio em Torres ou Capão. Isso aqui é muito diferente. É calmo e tem lugares lindos, como um lago onde dá para tomar banho.
O encanto agreste de Dunas Altas também consegue roubar gente de outras paragens mais movimentadas e convencionais. Veranista em Quintão, Darlan Pinto Teixeira, 36 anos, diariamente põe a família dentro do carro e percorre os cerca de oito quilômetros que o separam do derradeiro balneário, em busca de sossego e belezas naturais.
Um dia, há dois meses, depois de chegar ao fim da última rua da última praia, Teixeira resolveu ir além e embicou pela areia, percorrendo 100 quilômetros para o sul, pela beira do mar, explorando o outro lado da fronteira:
– Para lá não tem nada. Só alguns pescadores, um navio encalhado, muitos bichos e lagoas de água limpa. É lindo – conta.
O DONO DA PRAIA
Dunas Altas tem dono e o nome dele é João Perdomini. Proprietário de vastas áreas ao sul de Quintão, o empresário diz que criou o balneário como uma forma de tentar resolver litígios envolvendo a posse das terras.
– Um prefeito de Palmares do Sul me convenceu de que, se eu não fizesse um loteamento, ia me incomodar o resto da vida. De fato, não tive mais problemas. Mas nunca fui de loteamento. Por isso, fiz de um jeito diferente.
A singularidade é que Dunas Altas nasceu, em 1988, concebida nos moldes de um condomínio, mas sem nenhum muro. A empresa de Perdomini abriu e calçou uma rua de cerca de dois quilômetros que conduz até Santa Rita, a praia mais próxima, criou um sistema de abastecimento de água potável por meio de poços artesianos e bancou a colocação de postes e fios para a criação de uma rede particular de fornecimento de energia, com um único contador. Não vende terrenos, só casas. Em troca das prestações, os condôminos têm direito a serviços como colocação de cadeiras na praia e guarda 24 horas.
Nos primeiros anos, as regras eram rígidas. Perdomini proibiu fumar, manter mascotes e fazer barulho. Ainda hoje, tem pouca paciência com quem tumultua sua praia.
– Temos um grupo homogêneo. É um ambiente muito tranquilo. Só vai para lá quem dá valor a esse tipo de comportamento. Quem atrapalha, faço questão de devolver o dinheiro e pedir que vá embora.
O curioso é que o ponto onde hoje se localiza Dunas Altas foi o núcleo original de Quintão. Há quase cem anos, o local reunia cerca de 70 casas de madeira. O isolamento e a falta de acesso à energia elétrica, no entanto, fez a população transferir-se para a atual Quintão. A zona ficou conhecida como Quintão Velho.
Quando começou o loteamento, Perdomini ainda encontrou quatro casas remanescentes. Para liberar a área, ofereceu imóveis em outra praia aos moradores. O próprio empresário mantém casa em Dunas Altas e escolheu veranear sempre lá.
– Ela está no fim do mundo, mas eu gosto. E é minha - explica.
MÁQUINA DO TEMPO AMBIENTAL
A praia de Dunas Altas oferece um raro vislumbre do que os ecossistemas costeiros gaúchos perderam com o acelerado processo de urbanização do Litoral Norte, que tem no balneário uma espécie de última fronteira.
Em nome das alegrias do veraneio, a presença humana expulsou de vastas áreas uma biodiversidade enorme. Nos arredores da última praia, esse rico ambiente natural ainda está preservado.
– É importantíssimo que a gente consiga manter essas áreas não urbanizadas. O pessoal não dá bola, acha que nosso litoral é só chocolatão, mas ele é um ambiente importantíssimo para a conservação da biodiversidade. É a parte do litoral brasileiro com maior diversidade de mamíferos marinhos, por exemplo. E só, de aves, temos registro de mais de 40 espécies – alerta o biólogo Ignacio Moreno, professor do departamento de zoologia da UFRGS e pesquisador do Ceclimar.
A urbanização, no entanto, elimina uma das principais fontes de alimento para as espécies que habitam a região. Pisoteados pelos humanos, tatuíras e outros invertebrados sumiram das zonas mais movimentadas. Outro problema é a poluição. Muitas tartarugas, para dar um exemplo, morrem por ingerir plástico que chega ao mar.
Ao norte de Dunas Altas, há apenas dois trechos pequenos ainda preservados, um nas imediações de Arroio do Sal, outro perto de Cidreira.
Depois, vem a zona ao sul de Dunas Altas, muito mais extensa. Ali há presença do tuco-tuco, de corujas buraqueiras, de inúmeras espécies de sapos, de tartarugas marinhas e de água doce, de lagartixas-das-dunas, de jacarés, de lobos-marinhos, de pinguins.
– À medida que a urbanização diminui esses habitats, essas espécies ficam em risco – afirma Moreno.