“Hoje cortei o cabelo no QG, busquei minha farda na lavanderia do QG, fui até o colégio D. J. Becker à noite e assisti aula de biologia, fui até o colégio para recordar o tempo que lá estudei, no ano passado, após fui para casa e dormi.” Esse trecho, escrito em 4 de abril de 1972, é o primeiro registro de Gilberto Fontoura em um diário. Na época, com 21 anos, ele não imaginava que o hobby fosse persistir por mais de cinco décadas. Hoje, aos 73, o aposentado luta para recuperar as mais de 17 mil folhas, agora amareladas e molhadas, que quase foram perdidas na enchente de maio.
As páginas, ora feitas à máquina de escrever, ora à mão, descrevem os pequenos e grandes momentos da vida de Gilberto. Contas pagas, compras, mudanças de cidade, passeios no parque, nascimento dos filhos, troca de empregos e devaneios compõem os escritos de diários do psicólogo. Entre os papéis, há também poemas e músicas que Gilberto escreveu para a esposa e os filhos. Os documentos foram os itens que o ex-morador do bairro Mathias Velho, em Canoas, mais se preocupou em salvar da casa que ficou abaixo d’água por quase 30 dias.
— Eu estava trabalhando no administrativo do Quinto Comando da Aeronáutica (Quinto Comando Aéreo Regional) e me sentei, na hora do almoço, e datilografei o dia anterior. A partir daí, fui começando a escrever, como um hobby. Depois, pensei em deixar algumas coisas registradas, para, caso eu precisasse fazer uma pesquisa, ter isso escrito. Por exemplo, um passeio que eu dei, uma visita que eu recebi, uma dívida que paguei. Tipo um arquivo. Mas eu fui gostando da história — relata o psicólogo.
Com o passar dos anos, outros materiais passaram a fazer parte da coleção de relatos de Gilberto. Após ingressar na faculdade de Psicologia, na década de 1970, Gilberto começou a escrever seus sonhos e anexar nos diários. Cartas de amor trocadas com a esposa, Francisca Fontoura, trabalhos de escola dos cinco filhos, e listas de filmes e músicas de cada ano também compõem os materiais.
— Isso faz parte da minha vida e da minha família. Às vezes eu releio coisas de 10 ou 30 anos atrás, para ver como era o meu pensamento. Vai acompanhando a minha evolução, a minha idade, o meu relacionamento. Psicologicamente, isso é muito bom, porque a gente vai se estudando. A maioria das pessoas são assim, vão se modificando com os anos. Só que eu posso ver a minha modificação porque está registrada — acrescenta.
Os filhos Iara Patrícia Fontoura, 45, Thales Fontoura, 31, e Thalia Fontoura, 24, não imaginam a vida sem os registros do pai. Iara Patrícia conta que, depois de adulta, ganhou do pai uma pasta com todos os seus trabalhos da época de escola. Thales, que ganhou um verso ao nascer, aprendeu com o pai a escrever músicas e tem esse costume até hoje. Thalia sabe de cabeça a letra da canção que o pai escreveu quando ela era pequena. “Muito obrigado, meu Deus, por me dar esse pai. Esse pai é demais”, diz a letra.
Condição
As folhas A4 estavam organizadas em pastas fichários, do tipo A-Z. Agora, os papéis continuam juntos e presos pela estrutura de metal, mas sem as capas. Todos os diários estão na garagem da nova casa de Gilberto, em Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana. É lá que o aposentado lava as páginas para tirar a sujeira e as pendura no teto para secar, na esperança de conseguir reagrupar os documentos em novas pastas.
— Eu vou recuperar todos eles. Vou botar em pastas novas — garante. A expectativa é de que 80% dos diários sejam recuperados até o final do ano.
Outra pasta, já reorganizada, guarda o prefácio dos diários. Como em um livro, o material tem o objetivo de contextualizar o leitor sobre a obra que descreve a vida de Gilberto. As primeiras oito páginas precisaram ser recuperadas. Em novas folhas, o aposentado rescreveu o mesmo conteúdo dos papéis molhados que não conseguiu salvar. No verso, colocou pedaços já secos dos documentos antigos.
“Tenho o pensamento de não ficar muito velho. Acho que muitas coisas já não posso curtir. Mas, quanto mais velho ficar, tudo vai ser mais difícil. Espero ter ainda muitos anos pela frente e divulgar este diário”, diz o último trecho do prefácio, que revisita vários anos de escrita.
Enchente
Os registros de 1972 até 2004 estavam armazenados em um armário de ferro na antiga casa de Gilberto. Os outros escritos ficavam em um armário de vidro, na parte externa. O aposentado não imaginava que a água fosse chegar até o telhado e, na hora de sair de casa para procurar um abrigo seguro, não cogitou levar as páginas consigo.
— Quando deu a enchente, lá no dia 3 de maio, eu saí de casa com água até a cintura. Mas já fomos atingidos por quatro enchentes. Então eu achava que logo ia voltar para casa. Só que de noite, eu vi em uma reportagem, que a água já tinha passado do telhado da minha casa. Aí eu pensei que tinha perdido tudo.
Apesar do receio de que os registros fossem levados pela força da água e se perdessem completamente, todos continuaram dentro da residência. Iara Patrícia conta que, em um primeiro momento, foi contra a ideia de recuperar os papéis:
— Fiquei com medo por causa das bactérias na água. Mas depois entendi que é a vida dele. São as lembranças dele. E isso é muito importante.
Essa não é a primeira vez que Gilberto trabalha para recuperar escritos perdidos. Uma vez, em uma mudança, esqueceu alguns documentos no sótão da casa antiga. Outra, enquanto vivia em um hotel, também perdeu papéis. Apesar das dificuldades pelo caminho, o escritor não tem intenção nenhuma de parar. A vontade de Gilberto é que seu último dia de vida seja escrito e anexado junto aos outros.