Alfredo Culleton (*)
Cartas estão entre os registros escritos mais antigos. As primeiras referências a esse gênero podem ser encontradas na Ilíada de Homero, na passagem em que Preto, banido de Argos, envia ao rei da Lícia, Lobates, uma carta pelas mãos de Belerofonte. Não sabemos do conteúdo dessa carta, mas podemos presumir a sua importância porque nela vinha o pedido de que o mensageiro fosse morto.
Desde seus primórdios, uma carta tem algumas caraterísticas bem peculiares, como estar provida de destinatário e remetente pessoais, contar com a data e o local em que foi escrita, saudações iniciais e uma amena e cordial despedida. Pelo alto grau de intimidade, importa que lhe esteja garantida a inviolabilidade do seu conteúdo.
Certo que há cartas de apresentação, de recomendação, de demissão, burocráticas e quase sempre desagradáveis; mas ao qual estou me referindo é àquele dizer que se não for por escrito não me animo a dizer, como diz um verso de Cesar Passarinho.
As cartas podem carregar segredos, por isso tendem a ser guardadas, por isso são invioláveis, por isso são lacradas, seladas, e por estarem carregadas de intimidade é provável que o autor fique com algum pudor respeito a esse escrito sobre o qual não tem mais domínio, já foi enviado, confessado.
Lembramos do filme Central do Brasil, em que Dora (Fernanda Montenegro) ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos, ou das cartas do avô da psicanalista Diana Lichtenstein Corso, um sobrevivente do Holocausto, escritas em húngaro, que Elida Tessler consagrou na instalação Levél (2022). Todas carregam algo a ser desvendado, um segredo que nos inspira uma curiosidade sobre o autor, seu tempo, o destinatário e sobre nós mesmos.
Entre tantas correspondências íntimas hoje publicadas, como as de Abelardo e Heloisa ou as ardorosas cartas de amor do general Napoleão à sua amada Madame Beauharnais, assim como as de Borges, Frida Kahlo ou Simone de Beauvoir, destacamos, pela fecundidade, as de Sigmund Freud, autor sempre associado ao campo da medicina ou da psicanálise, que contém no universo dos seus escritos em torno de 20 mil cartas, 4 mil delas publicadas. As primeiras de que se tem registro são as de um jovem médico, apaixonado por Martha Bernays, com quem veio a se casar. Não são apenas epístolas amorosas, mas o prenúncio do perfil que irá desenvolver até a Interpretação dos Sonhos, antecipação daquilo que levará até as últimas consequências: o mistério de cada um, o seu segredo. Aquelas endereçadas para a sua noiva foram cartas de pura intimidade e entrega como esta de agosto de 1882 onde diz: “Só me dói a incapacidade para te demonstrar o meu amor...”.
Este caráter íntimo das cartas nos leva a tratar desse gênero de escrita com um decoro especial, e o fato de estar em desuso não nos escusa de tratar do mais importante desse gênero literário qual seja esse modo privilegiado de partilhar intimidades que necessitará de novas plataformas. As cartas parecem não ser mais o suporte para essa littera, essa letra dada. Esse suporte parece ter caducado, mas não o sagrado/segredo; ou este também se foi? Alguma coisa mudou. Seriam as intimidades cultivadas de outra maneira? Ou que a liturgia de meditar por escrito, ir até o correio, escolher o selo e postar uma carta ficou contramão, ou assumiu outra forma mais instantânea? Ou já não temos paciência para esperar aquela carta que pode ou não vir, ou os estados da alma já foram devida e criteriosamente medicados?
Essas intimidades, esses segredos, esses postos à parte, separados, colocados onde não fiquem visíveis nem de fácil acesso até para quem os guarda são os mistérios que nos constituem. Mas o que é isso que se guarda? Que segredos são esses? O próprio portador nem sempre sabe quais são, duvida de serem próprios ou alheios. Tem alguns poucos suportes para esses segredos, já o foi a confissão, algum momento de uma conversa com um amigo, mas sem dúvida cartas têm-se consagrado um lugar privilegiado. A pergunta é: onde se contam e alimentam os segredos ou já não os necessitamos e agora somos transparentes, não temos mais nada para esconder ou revelar a ninguém? Desde muito cedo as crianças aprendem a criar e partilhar segredos, próprios ou alheios, e estabelecem vínculos duradouros a partir deles. Desde muito cedo sabemos que o mundo se sustenta num segredo que não poderia ser revelado a todos, e é precisamente esse o segredo das cartas, nos contar coisas que sabíamos e não sabíamos ao mesmo tempo.
(*) Psicanalista