O clima de expectativa e euforia comum que envolve uma família quando um bebê está por chegar deu lugar a uma intensa batalha jurídica no caso das gêmeas siamesas Milena e Sofia. Os pais, Lorisete dos Santos e Marciano da Silva Mendes, moradores de São Luiz Gonzaga, foram surpreendidos com a descoberta de que as filhas eram gêmeas siamesas durante um exame de ultrassom feito em 9 de agosto. Elas nasceram em 1º de novembro e estão entubadas no Hospital Fêmina.
Assustados com a notícia, buscaram mais detalhes fazendo consultas e exames particulares. Devido à complexidade do caso, foram encaminhados para atendimento no Hospital Fêmina de Porto Alegre. Com a confirmação de que as filhas tinham má-formação e não teriam chance de sobreviver e ainda de que Lorisete corria risco de morte, foram encaminhados para acompanhamento psicológico no próprio hospital de referência.
O casal recebeu orientações sobre procedimentos a serem adotados. Depois disso, houve a decisão de fazer o pedido judicial para a interrupção da gestação. No começo de setembro, Lorisete e Marciano buscaram ajuda da Defensoria Pública, que ingressou com ação pedindo autorização para o aborto. Nesta época, Lorisete estava com 23 semanas de gravidez.
O pedido foi negado e recursos foram feitos até o Supremo Tribunal Federal (STF), sem sucesso. Hoje, as gêmeas têm pouco mais de um mês de vida. Com um corpo único, alguns dos órgãos compartilhados (elas têm, por exemplo, dois corações e apenas uma artéria aorta, dois braços, duas pernas e duas cabeças), seguem internadas e entubadas no Hospital Fêmina, que não fala sobre o caso.
— Tínhamos um laudo médico que não dava margem para questionamento sobre a impossibilidade de vida extrauterina. O pai me dizia que os médicos repetiam que havia risco real de a Lori morrer e que as crianças não tinham como sobreviver. Os pais queriam o aborto. Agora, tudo se inverteu. A mãe se salvou, felizmente. E a família tem a esperança de salvar as gêmeas. Segundo o pai, os médicos continuam afirmando que estão fazendo o máximo possível para mantê-las vivas e que não há viabilidade de separação nessas gêmeas siamesas — diz Andréia Rambo Moraes, a defensora pública que fez a ação.
O pedido de alvará para realização do aborto protegendo a mãe de ser enquadrada em crime foi negado pelo juiz Kabir Vidal Pimenta da Silva, da Vara Criminal de São Luiz Gonzaga. Um dos argumentos da decisão foi de que não havia comprovação suficiente sobre o risco à vida da mãe. A Defensoria Pública entrou em contato com o Hospital Fêmina solicitando laudo complementar.
— Mas os médicos se reuniram e entenderam que tudo que era necessário já estava no laudo inicial. Após o nascimento das gêmeas, as informações do estado clínico delas são apenas as repassadas pelo genitor — explicou Andréia.
A partir da negativa da Justiça de São Luiz Gonzaga, a defensoria seguiu interpondo Habeas Corpus (HCs) para tentar uma decisão rápida, já que a gravidez avançava. Ao analisar os HCs, o Tribunal de Justiça (TJ) do RS, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF se manifestaram sempre dizendo que Habeas Corpus não era a ação cabível para discutir o caso. Além disso, o STJ e o STF deixaram de analisar o pedido feito no habeas por entender que o assunto deveria ter o debate exaurido no TJ do RS.
— O recurso contra a decisão de primeiro grau é a apelação, mas optamos por Habeas Corpus pela urgência. A Defensoria, como instituição, dentro das informações médicas que nos foram trazidas por meio de laudos e diante da urgência que o caso reclamava, tomou todas as providências no âmbito judicial — conclui a defensora pública.
Trechos do laudo que embasou o pedido de interrupção da gravidez (veja o documento abaixo), assinado pelo médico André Luiz Baptista de Oliveira, do Serviço de Medicina Fetal do Hospital Fêmina, com data de 5 de setembro, informam que, de acordo com os estudos científicos revisados na literatura, o prognóstico "é muito reservado, com mortalidade alta e muito poucos casos em que houve possibilidade de separação dos fetos com sucesso após o nascimento".
Destaca, ainda, que "a separação dos gêmeos após o nascimento se torna inviável e o caso foi considerado incompatível com a vida pelos especialistas em medicina fetal do nosso hospital. De acordo com a vontade expressa pelos pais e com o exposto acima, colocamo-nos à disposição para realizar a interrupção terapêutica desta gestação caso haja decisão judicial neste sentido".
Entenda a cronologia do imbróglio jurídico
8 de setembro
A família procurou a Defensoria Pública de São Luiz Gonzaga, encaminhada pela rede pública municipal de saúde, portando atestado de incompatibilidade de vida extrauterina das gêmeas siamesas emitido pelo Hospital Fêmina. Lorisete estava com 23 semanas de gravidez. A descoberta de que as filhas eram gêmeas siamesas ligadas por um único tronco e tendo duas cabeças ocorrera cerca de duas semanas antes, durante exame morfológico em São Luiz Gonzaga.
Desesperado com a informação, o casal pagou consultas particulares até conseguir atendimento pelo SUS no Hospital Fêmina. Foi da instituição que saiu o laudo que embasou os pedidos de autorização para aborto.
Ainda que médicos estejam autorizados a fazer o aborto sem ordem judicial quando detectam risco de vida da gestante, Lorisete buscou a autorização para evitar que a retirada dos fetos fosse enquadrada em crime de aborto previsto no Código Penal.
12 de setembro
A defensora pública Andréia Rambo Moraes ingressou na Justiça com pedido de alvará com autorização de interrupção terapêutica da gravidez. A alegação era de inviabilidade de vida extrauterina com base em decisão do Supremo Tribunal Federal (julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 54), que definiu que o aborto feito em caso de feto anencéfalo não é punível. A Defensoria também alegou risco para a saúde da mãe.
15 de setembro
O juiz Kabir Vidal Pimenta da Silva, da Vara Criminal de São Luiz Gonzaga, indeferiu o pedido de expedição de alvará para realização do aborto.
A manifestação do Ministério Público na ação também foi contrária ao pedido, por entender que não havia nos autos comprovação efetiva de risco "iminente e concreto à vida da gestante". Sobre a alegação de gravidez de risco, o juiz disse não haver "laudo cabal nesse sentido" e também que a situação, caso existente, não se inclui entre as hipóteses legais que permitem a interrupção da gravidez.
O magistrado ressaltou ainda que a gestante havia passado por atendimento em hospitais de referência onde os médicos não interromperam a gestação, mesmo estando autorizados a fazê-lo em caso de risco de vida da mãe. Por fim, o magistrado listou, na sentença, links com notícias de casos em que gêmeos siameses sobreviveram unidos ou mesmo separados em cirurgia.
16 de setembro
A Defensoria Pública ingressou com Habeas Corpus junto ao TJ para questionar a decisão do juiz de São Luiz Gonzaga.
16 de setembro
O relator do caso na 1ª Câmara Criminal, desembargador Sylvio Baptista Neto, decidiu, monocraticamente, que o habeas não era a medida adequada para recorrer da decisão do juiz de primeiro grau, ou seja, o pedido feito no habeas sequer foi analisado no TJ. O relator destacou que habeas "é cabível apenas quando a matéria versada for unicamente de direito, não havendo dúvidas quanto aos fatos. Se, por ventura, demandar um melhor exame da prova, ou até mesmo do direito em discussão, a questão deve ser apreciada em recurso próprio, sempre mais abrangente".
No caso em discussão, que era a autorização de aborto fora das previsões legais, o desembargador entendeu ser uma "situação complexa", cuja solução dependeria da análise de diversos fatores e, portanto, não poderia ser analisada por meio de Habeas Corpus.
19 de setembro
Defensoria pública ingressa com Habeas Corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), questionando a decisão do TJ RS, que não analisou o questionamento sobre a decisão do juiz de São Luiz Gonzaga.
22 de setembro
O STJ indeferiu o Habeas Corpus por entender que o caso só poderia ser analisado pelo tribunal superior depois de o debate ter sido esgotado nas instâncias inferiores, ou seja, no TJ RS. O ministro relator Jorge Mussi registrou que devia ser interposto agravo regimental no TJ RS antes de ser aberta outra frente de recurso.
23 de setembro
Defensoria Pública ingressa com Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a decisão do STJ.
26 de setembro
Defensoria Pública ingressou com agravo regimental no Tribunal de Justiça para impugnar a decisão que não aceitou analisar o pedido feito no Habeas Corpus.
29 de setembro
STF nega o andamento e análise do Habeas Corpus.
30 de setembro
Defensoria Pública interpõe agravo regimental no STF questionando a decisão que impediu a análise do habeas.
8 de outubro a 11 de outubro (sessão virtual)
O agravo começa a ser julgado em sessão virtual pela 2ª Turma do STF. A Procuradoria-Geral da República se manifestou a favor do pedido, registrando que "diante da inviabilidade de vida extrauterina atestada por médicos, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto". Os ministros negaram andamento ao recurso nos termos do voto do relator, ministro André Mendonça.
O relator considerou que o o caso não podia ser discutido por meio de Habeas Corpus. Além disso, destacou a fundamentação de sua decisão anterior, em que já negara o andamento do recurso: "Ausência de previsão legal da hipótese de aborto pela possível inviabilidade de vida extrauterina de fetos siameses, não possibilidade de aplicar no caso o mesmo entendimento usado para fetos anencefalos e pela desnecessidade de autorização judicial para interrupção terapêutica da gestação, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante".
13 de outubro
Defensoria Pública ingressa com agravo regimental no STJ para impugnar decisão da corte que negou análise do Habeas Corpus.
14 de outubro
O desembargador Sylvio Baptista Neto, da 1ª Câmara Criminal do TJ, decidiu: "Rejeito o agravo regimental. A decisão monocrática (que não concedeu o Habeas) está correta e obedece, inclusive a jurisprudência dominante a respeito". Ou seja, a tentativa da Defensoria para que o Habeas Corpus fosse analisado pelo Tribunal de Justiça não prosperou.
15 de outubro
Defensoria Pública ingressa com um segundo Habeas Corpus no STJ.
21 de outubro
Defensoria faz Pedido de Reconsideração no STJ em relação à decisão que não deu andamento ao segundo Habeas Corpus.
9 de novembro
Com as gêmeas já nascidas por meio de cesariana realizada no Hospital Fêmina, o STJ analisa o agravo regimental e, mais uma vez, nega o andamento do Habeas naquela Corte.