Um fio invisível que atravessa décadas e mais décadas conecta o legado do político e agropecuário Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), expoente maragato que marcou a história do Rio Grande do Sul, à vida de uma contemporânea família de empresários de embalagens de madeira de Flores da Cunha, na Serra Gaúcha.
Assis Brasil, cujo nome batizou avenidas e o parque que abriga a Expointer, foi uma das mentes por detrás da Revolução de 1923, que opôs chimangos (defensores do então governador Borges de Medeiros, à frente do Executivo gaúcho por 25 anos) a maragatos. O conflito resultou em mais de 1 mil mortos.
Na pequena Pedras Altas, a cerca de 100 quilômetros de Bagé, Assis Brasil construiu um luxuoso castelo de 44 cômodos, ao estilo medieval europeu, para receber sua segunda esposa, Lydia Pereira Felício de São Mamede, que viera de Lisboa para o Rio Grande do Sul. O castelo foi comprado neste ano por uma família de advogados de Santa Maria e após ser revitalizado, abrirá ao público. A história foi contada por ZH em 13 de agosto.
Dois dias após a publicação da reportagem, a empresária de Flores da Cunha Adriana Oliboni, 48 anos, enviou um entusiasmado e-mail ao repórter: “Conheci o castelo de Pedras Altas em 1991, fomos recebidos pela filha (de Assis Brasil), também chamada Lydia. Meu pai, apaixonado pela monumental obra arquitetônica e pela história de Joaquim Francisco de Assis Brasil, construiu um castelinho aqui em Flores da Cunha, que é nossa residência”.
Empresário e prefeito de Flores da Cunha por dois mandatos pelo PDT, Heleno Oliboni herdara a paixão pela história do Rio Grande do Sul e pelo lenço vermelho dos maragatos do pai — o seleiro Antônio Oliboni servira como guarda do então presidente Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
A ideia de construir uma releitura do castelo de Pedras Altas partiu de Heleno, falecido em 2017, aos 70 anos, após ler uma reportagem de ZH de 16 de dezembro de 1990 sobre a luxuosa residência da família Assis Brasil. A matéria, intitulada Castelo de Sonhos, trazia fotografias da fachada e da biblioteca com títulos raríssimos. Fascinado, o empresário decidiu construir para a esposa Helena e filha Adriana um castelo como lar.
— Meu pai sempre gostou de história do Rio Grande do Sul, puxou do meu vô, que participou da história do Getúlio. Veio daí muito interesse pelo tradicionalismo, um despertar pela cultura gaúcha e, com isso, pelos personagens da história do Rio Grande do Sul. O Assis Brasil estava em primeiro lugar — conta Adriana.
Com base nas fotografias do castelo de Pedras Altas estampadas nas páginas de ZH de 1990, Heleno desenhou croquis para a futura residência familiar. Levou as páginas do jornal também para um engenheiro — a obra sofreu adaptações no percurso para reduzir gastos.
— Ele era debochado quando dizia que queria construir um castelo. Falavam: “imagina, uma casa de pedra, vai ser ridícula”. Mas ele respondia: “não vai ser casa, vai ser um castelo" — relembra a costureira e empresária Helena Bebber Oliboni, 73 anos, viúva de Heleno.
— Sempre tive muito medo de temporal, eu morava no Interior e muita casa era destelhada, então, quando ele falou do castelo, pensei: ótimo, não vou ter mais medo de temporal. De fato, nunca despertei de noite por medo de chuva — acrescenta.
Heleno visitou o castelo de Pedras Altas apenas duas vezes na vida, ambas após ler a reportagem de ZH. Na primeira, conta a filha, levou de presente para Lydia, filha de Assis Brasil, um cavalo de couro e um tapete, mas não chegou a encontrá-la pessoalmente – deixou os artigos com um caseiro e avistou a propriedade de fora.
No ano seguinte, retornou a Pedras Altas com esposa e a filha, que tinha 16 anos — a família então foi recebida por Lydia. Ao entrarem no castelo e visitarem a sala de estar e a rica biblioteca, ficaram impressionados com a imponência da construção, dos aposentos e da decoração.
— Foi a realização do sonho dele. Meu pai ficou fascinado, conheceu o castelo e a filha do Assis Brasil — relembra Adriana.
Um diálogo na sala de estar do castelo de Pedras Altas ficou gravado na memória da filha, então adolescente. O pai reparara nas marcas de conflitos entre chimangos e maragatos nas paredes da residência dos Assis Brasil.
— Vocês vão arrumar esse buraco de bala aqui na sala? — perguntou Heleno.
— Não, uma casa deve ter suas cicatrizes — disse Lydia ao visitante.
Se o castelo de Pedras Altas erguido pelo fazendeiro Assis Brasil emana uma aura medieval e imponente por dentro e por fora, o castelinho de Flores da Cunha é mais simples, com uma aura que alia antigo ao confortável. São 300 m², três quartos e um quarto cômodo na torre do castelo, acessado por uma escada. Foram necessários quatro anos para construir a residência, que recebeu os Oliboni em 1993. O portão de entrada, de madeira cabreúva, imprime imponência. Ao mesmo tempo, tapetes, cristaleiras e confortáveis sofás espalhados no ambiente interno trazem sensação de aconchego, como uma casa de vó.
— A construção manteve a comodidade de uma residência. Meu pai queria um pé direito mais alto, mas não tínhamos recursos. Ele até queria cercar com muros de pedras e fazer um fosso d’água ao redor — conta Adriana.
O hábito colecionador de Heleno é expresso na decoração, com facas, espadas, bengalas e diversos bricabraques históricos, como um antigo estribo para mulheres e uma espada de aço Solingen. Os artigos eram comprados de diferentes vendedores do Rio Grande do Sul, sobretudo do Brique da Redenção, em Porto Alegre.
Um punhal da época da Revolução de 1923 ganha destaque em um cômodo, e o apreço pelo getulismo é nítido em um busto de Getúlio Vargas emoldurado em uma sala. Pela ligação de Heleno com o PDT, o castelinho já recebeu figuras como Brizola e Collares. Em alguns cômodos, o encontro entre duas paredes dá lugar a uma cavidade para apontar armas para inimigos de fora - artimanha decorativa para simular um castelo medieval.
O apreço pela história do Rio Grande do Sul tentou ser transmitido para a filha - Adriana acompanhou o pai duas vezes em viagens por roteiros turísticos que refaziam o caminho de tropas farroupilhas. Pai e filha visitaram cidades como Bento Gonçalves, Piratini, São José do Norte e Mostardas.
— Apesar de o meu pai não ter tido formação superior, ele lia e se informava muito, era bastante inteligente. Gostava muito de política, das revoluções, dessa força do Rio Grande do Sul, de se orgulhar das origens — relembra Adriana.
A filha trabalhou durante anos como assessora legislativa e foi competidora de bodybuilding, mas hoje assumiu os negócios familiares na área de embalagens. A mãe, Helena, após anos de trabalho como costureira e empresária, deixa a filha tocar a rotina empresarial e se ocupa mais da casa. Ambas dividem a propriedade com gatos, cachorros e um cavalo. A despeito de viverem em castelo, recusam qualquer comparação com nobreza.
— Aqui não tem rainha nem princesa. É lugar de gente simples. Tudo o que temos foi muito batalhado — sentencia a matriarca Helena, enquanto caminha no gramado cuidadosamente aparado.