CORREÇÃO: entre as 18h34min do dia 25 de janeiro e as 10h27min do dia 26 de janeiro esta reportagem afirmou que a distância mantida do ninho de quero-queros era de 40m. A informação já foi corrigida.
Uma estrutura provisória, com direito a cercadinho de tela sombrite e corrente zebrada com um guarda-sol no meio, chama a atenção de quem ingressa no terreno da família Marques, na Ilha dos Marinheiros, em Rio Grande. A área demarcada, a única que não teve a grama cortada nas semanas mais recentes, é o lar de Ivete e Valdemar, um casal de quero-queros que encontrou ali o local ideal para a próxima ninhada.
Engana-se quem pensa que será afugentado pelas aves com os conhecidos voos rasantes, os grunhidos emitidos ou a mostra do esporão nas asas. Basta Ivete e Valdemar ouvirem a voz do empresário Reginaldo Gago Marques, 49 anos, proprietário da casa, para aquietarem-se, mesmo enquanto há ovos sendo chocados, como ocorreu na semana passada, quando a equipe de reportagem esteve no local.
Enquanto Ivete cuidava do ninho, Valdemar, que é reconhecido pela família por caminhar mancando de uma pata, se aproxima até meio metro de Reginaldo, sem demonstrar medo. O empresário mantém um distanciamento de quase um metro, mas conversa com a ave como se estivesse falando com um dos dois labradores, Black e Brown, que vivem em harmonia na mesma área.
— Como está muito calor, colocamos o guarda-sol para protegermos o ninho deles com alguma sombra. A ideia de sinalizar o espaço dos bichinhos foi para mantê-los em segurança, pois circulam muitas pessoas pelo pátio — conta Reginaldo, que é dono de um camping.
Luciana Marques, 49 anos, mulher de Reginaldo, recorda que a primeira vez que os quero-queros foram vistos preparando um ninho no terreno da família foi há oito anos. Desde então, os Marques acompanham a luta de Valdemar e da parceira, que não sabem se é sempre a mesma, para manterem viva a ninhada. Pelo menos uma vez por ano, a área escolhida por eles para fazer o ninho é sinalizada pela família. Porém, nunca há sucesso na investida.
— Eles não conseguem ter os filhotes. Vem lagarto ou cobra e comem os ovinhos. A única vez que vi um deles vingar, o coitado do filhotinho morreu atropelado por um carro quando tentava atravessar na estrada. Vi a mãe correndo na direção dele. Muito triste — recorda Luciana.
Até por isso, desta vez, Reginaldo decidiu contribuir ainda mais para a proteção do ninho. A meta é ver o casal de quero-quero feliz com os filhotes.
— Mesmo a distância, considero eles nossos amigos. Passam o ano por aqui, são nossos seguranças. Se chega alguém diferente no portão, eles fazem barulho. Queremos só o bem deles e, para isso, respeitamos o espaço dos dois. Não nos aproximamos mais do que devemos — comenta Reginaldo.
Amizade curiosa e inesperada
Para o professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ismael Franz, a amizade entre os Marques e o casal de quero-queros é um caso, realmente, curioso e inesperado.
— Não conheço outro caso com esta espécie de quero-quero que tenha relação mais próxima com seres humanos e não apresente o comportamento defensivo e esperado, ao menos durante o período reprodutivo, enquanto o casal tem ninho ativo com ovinhos ou filhotes pequenos. Por outro lado, é uma espécie que se adapta ao meio urbano ou suburbano — relata o especialista.
Professor de Zoologia da Universidade Feevale, Marcelo Pereira de Barros elogia a relação de respeito entre a família e os quero-queros e destaca também a inteligência das aves.
— O quero-quero é uma ave silvestre, nativa, de campo e áreas abertas, mas eles estão se adaptando à área urbana. Entre aspas, podemos dizer que eles estão se "antropizando" por conta do crescimento das cidades. É incomum eles deixarem alguma pessoa se aproximar tanto dos ninhos, mas talvez este casal tenha se acostumado à presença, à maneira de se vestir dos donos e deixa eles se aproximarem do ninho — comenta Barros.
Os especialistas relatam que a espécie Vanellus chilensis não é uma ave típica de áreas florestadas e tem o hábito de nidificar (fazer ninhos) em áreas de visão aberta e horizontal, como praças, grandes terrenos e até campos de futebol. Ele é típico do Pampa gaúcho e é a ave símbolo do Rio Grande do Sul, podendo ser encontrado em toda a América do Sul.
— Ele é bem comum no nosso Estado, chamado de "sentinela dos pampas" porque são considerados vigias — explica Barros, ao ser informado que o casal de quero-queros de Rio Grande costuma alertar a família Marques sobre os visitantes.
Os dois professores parabenizam a atitude dos Marques de proteger o casal de quero-queros durante o choco dos ovos e também fazem um alerta importante à população: jamais se deve alimentar as aves ou tentar aproximação delas. Todo o cuidado é aceitável, mas sem modificar o ambiente ao ponto de que possa alterar o comportamento natural da espécie.
Saiba mais sobre os quero-queros:
- Tem pernas longas, olhos vermelhos e topete na cabeça.
- Os ninhos são construídos no solo e abrigam até quatro ovos. É comum os filhotes sumirem ou não sobreviverem pois, dois dias depois de o ovo eclodir, eles já estão aptos a fugir dos predadores.
- A espécie é residente, não se desloca em um determinado período, permanecendo nos locais em que habita durante todo o ano.
- A reprodução ocorre entre a primavera e o verão, de setembro a março. Cada ninhada pode durar de 21 a 30 dias.
- O casal toma conta do ninho. Quem faz a defesa da área, geralmente, é o macho. A fêmea passa mais tempo chocando.
- O quero-quero não é uma ave que ataca: ele dá o voo rasante, chega próximo e mostra o esporão que tem na asa somente com o intuito de afugentar potenciais predadores dos seus ovos ou filhotes. Este tipo de comportamento só ocorre quando o ninho está ativo.
- Estudos apontam que um quero-quero pode durar até dez anos.