O telefone da professora Cristiane dos Santos Ataya, 43 anos, recebe um chamado, e ela logo identifica o número: é uma de suas alunas. A criança ligou para dizer que não vai a aula naquele dia, pois está muito cansada.
— Ela disse “professora, estou com muita dor nos braços, de remexer no lixo” — conta a docente, com revolta pela situação.
O doloroso relato é frequente, garante Cristiane, mas poderia ser diferente. Com esperança de mudar esse futuro - para quem pouco espera do presente -, ela abriu a garagem de casa, no Loteamento Reprise, bairro Aparecida, em Alvorada, oferece refeições e reforço escolar para a comunidade da Região Metropolitana.
Até 2020, a educadora trabalhava em uma escolinha de educação infantil, mas o local fechou as portas devido à crise gerada pela pandemia de coronavírus. Desempregada, sustentando a casa com auxílio emergencial e o salário do marido, motorista de caminhão, Cristiane parou de servir almoços, mas manteve o lanche, batendo de porta em porta atrás dos produtos.
— Eu ganho máscaras de uma costureira, ou compro, e vou nas casas oferecer o acessório em troca de um suco, leite, biscoito ou achocolatado — explica.
Uma padaria do centro da cidade entrega pão de graça a um motorista de aplicativos, que leva até o projeto. A geladeira que mantém resfriados iogurtes e outros alimentos tem um cartaz inspirador: “Já fez sua boa ação do dia?”.
Para a sala improvisada, a garagem ganhou um quadro negro, pendurado ao lado da biblioteca de livros apoiados em pallets de madeira. O déficit de aprendizado dos estudantes acolhidos e a subnutrição da garotada estão entre as maiores preocupações da idealizadora.
— Tem aluno com dez anos de idade que ainda não sabe ler. Crianças que procuram comida no lixo, porque precisam ajudar os pais. A reciclagem é uma opção da família, mas não é lugar pra quem deveria estar na escola — desabafa.
Batizada de “Mãos do Futuro”, a ação iniciou em 2016, mas somente no último semestre ganhou registro, e é atualmente uma associação com intuito educativo. Tem também capoeira e artes marciais, ministradas em um tatame doado pela vizinhança. Oficinas de violão, lições de espanhol e balé também ocorrem graças a parceiros.
— Tem uma moça que não tem condição de ajudar financeiramente, mas empresta o cartão pra comprar parcelado no mercado — cita e agradece Cristiane.
Na manhã desta quarta-feira (3), a professora recebeu a reportagem de GZH e falou sobre o projeto na Rádio Gaúcha. Estava acompanhada de dois voluntários. O transportador Filipe Monteiro, 34 anos, leva mensalmente um grupo à aula de balé em Porto Alegre. Chega a fazer duas viagens, mas não cobra sequer o combustível gasto.
— Eu penso nos meus filhos, vejo a felicidade das crianças e sempre vou ajudar — diz, com a voz embargada ao falar dos filhos.
Espécie de tesoureiro da associação, Maycon Monteiro, 31 anos, é direto:
— Esse projeto já salvou e ainda vai salvar muitas vidas.
Atualmente são atendidas 25 crianças, de segunda a quinta, das 13h15min a 17h45min. Eventos de Natal, Dia das Crianças e Páscoa triplicam esse total.
Na frente da residência, foi iniciada a obra de uma calçada e Cristiane sonha em fazer uma cobertura, para ampliar a capacidade das oficinas e o número de atendimentos. Um profissional de psicologia que possa oferecer seu serviço de forma gratuita também é procurado. Contatos podem ser feitos no Instagram @projetomaosdo (assim mesmo, sem o futuro), ou no telefone direto da professora: (51) 99226-1157, mesmo número de WhatsApp e Pix.