Carlos Alberto Gianotti (*)
"Se, na amizade de que falo, um pudesse obsequiar ao outro, aquele que recebe o benefício é que estaria obsequiando seu amigo." (Michel de Montaigne, em Da Amizade)
"Algo no infortúnio de nossos amigos não nos é totalmente desagradável." (Duque de La Rochefoucauld)
Ao longo de toda vida adulta economicamente ativa, os indivíduos mantêm variados objetivos, e para os atingir precisam contar com a colaboração de outros; todavia, se for necessário àquele atingimento, se lhes pode puxar o tapete, mesmo se tratando de alguém considerado amigo – uma vez que antes de tudo vêm os próprios interesses de cada um. Este é o círculo do eu, que não aceita limites.
É curioso como as criaturas humanas rigorosamente jamais falam àquelas com quem interagem, mesmo aos amigos, sobre as mazelas da sua vida familiar, acerca de sua vida sexual, sobre seus proventos e sua situação financeira. Em geral, tais coisas se as mantêm escondidas; sobre elas, ou não se fala, ou se mente acerca delas.
Muito se tem ouvido das pessoas durante esta pandemia, que sentem falta da comunicação direta com os amigos, quando muito restrita a conversas por vídeochamadas telefônicas. Porém, seria adequado indagar se esses amigos, a quem se referem ao dizer que se sente falta do falar com eles, seria uma generalização do vocábulo, ou de amigos na acepção da amizade singular e perene.
Haverá categorias de amigos? Ou amigo é uma condição única, o qual é diferenciado do mero conhecido, do colega de trabalho ou de aula com quem se convive amiúde, do vizinho de há anos, daquele a quem no passado se chamava “meu faixa”, e, na modernidade, o amigo da rede social? Serão todos esses efetivamente amigos, ou apenas meros conhecidos com os quais é nutrido algum interesse mútuo, digamos, por trabalhar num mesmo local ou comungar ideias e, assim, poder conversar amistosa e agradavelmente em certos momentos, mesmo pelas redes? Mas nesses diálogos, haverá de ser ocasionalmente descrito ao assim chamado amigo, aberta e honestamente, aquelas já faladas mazelas da vida familiar, a vida sexual e os valores de proventos e a situação financeira? E se irá relatar sem evasivas sobre as lutas pelo poder e sobre como foi dada a rasteira no colega para lhe usurpar o cargo na empresa?
O escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989) publicou em 1942 um dos grandes romances do século 20, As Brasas (Companhia das Letras, 2017), que trata da amizade. Narra o diálogo entre dois amigos inseparáveis desde a infância até parte da vida adulta, que se reencontram depois de não se comunicarem por 41 anos. É o diálogo entre dois velhos, revelando-se impressionante na prosa de Márai que, com 41 anos idade quando a concebeu, conseguiu exprimir em tom verossímil a linguagem, a problemática e os sentimentos de idosos, numa amostra de talento literário.
Dirá o leitor atento: como pode o romance abordar a amizade entre pessoas que deixaram de se comunicar havia 41 anos? Pode-se mencionar como amizade a de dois indivíduos que não interagiram por qualquer meio por tanto tempo?
Em As Brasas, Márai fabula que ser amigo de alguém é quase um serviço prestado ao outro, porque se o aceita, com seus defeitos e idiossincrasias, com suas neuroses, sem se ver obrigado a isso e nada esperar de volta; quanto vale uma amizade que almeja recompensa?, indaga o autor. Ser amigo vem a ser um sentimento não escolhido em relação ao outro, afeição de dimensão ampla e fundamental, mas sem qualquer natureza contratual, assemelhando-se quase a uma paixão, na medida em que tem feições de um altruísmo que do outro nada exige, nada espera.
A amizade não pertence ao círculo do eu, pois não comporta a inescapável luta pelo poder; ela diz respeito ao círculo do nós, o eu e o outro, ambos nada esperando reciprocamente; ou seja, a amizade é um máximo de perfeição como sentimento peculiar das relações humanas, como disse o inigualável Michel de Montaigne (1533-1592). E não pertence ao ambiente das redes sociais.
(*) Professor de Física e editor-executivo da Editora Unisinos