O cansaço em relação à pandemia afetou a mobilização social. Se nos primeiros meses do coronavírus no país as contribuições para projetos e iniciativas sociais eram robustas e frequentes, agora, no momento mais crítico e delicado da doença no Brasil, as doações minguaram. Grande parte da solidariedade vista no começo da aplicação das medidas de restrição de circulação diminuiu. Mesmo em um terreno árido para a solidariedade, porém, diversas frentes de apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade tentam motivar a sociedade para que a corrente de boas ações não se rompa.
A maior movimentação das iniciativas objetiva angariar alimentos para que, posteriormente, eles sejam distribuídos em forma de cestas ou de marmitas para aqueles que vivem a incerteza da próxima refeição. E o aumento da procura por ajuda anda de mãos dadas com a pandemia, isso porque ela colocou novamente em evidência um problema histórico do Brasil: a fome.
De acordo com André Salata, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em média, 70% da renda das famílias vem do mercado de trabalho e o desaquecimento da economia, provocado pela crise sanitária, fez com que a renda de milhares de brasileiros despencasse, principalmente, entre os mais vulneráveis.
Segundo dados do boletim Desigualdade nas Metrópoles, feito pela PUCRS em parceria com o Observatório das Metrópoles e Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), a redução nos rendimentos dos mais pobres da região metropolitana de Porto Alegre (RMPA) foi superior à média nacional:
— A renda domiciliar per capita do trabalho entre os 40% mais pobres do país caiu 30%, quando comparamos o quarto trimestre de 2019 e os últimos três meses de 2020. Para o mesmo período e grupo, na RMPA, a queda na renda foi ainda maior, de 40%. Vale lembrar que essa já é uma parcela da população com renda muito baixa. Isso fez com que aumentasse o número de famílias abaixo da linha da pobreza e da pobreza extrema, que são aqueles que não conseguem ter o mínimo para ingerir as calorias necessárias por dia.
Temos um problema duplo, a renda das pessoas caiu e o custo dos alimentos aumentou. Quer dizer, as pessoas estão com menos poder de compra, sendo impactadas por um momento grave da crise sanitária e econômica e, muitas vezes, sem poder contar com uma rede de apoio porque elas já foram acionadas no passado
ALESSANDRO MIEBACH
Professor de Economia da UFRGS
Alessandro Miebach, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que a chegada do auxílio emergencial fornecido pelo governo federal ajudou a mitigar a fome e gerou ganho de rendimentos para os mais pobres no ano passado. Entretanto, a interrupção do benefício no início deste ano fez com que o país entrasse no fosso da fome novamente:
— Tanto foi um erro a interrupção do benefício que ele foi reativado, isso porque as pessoas não vão conseguir vencer a fome sem ajuda. O auxílio emergencial é algo a se saudar, mas ele deve ser articulado com outras medidas de derrubada da taxa de transmissão do vírus, como o isolamento social. Agora, temos um problema duplo, a renda das pessoas caiu e o custo dos alimentos aumentou. Quer dizer, as pessoas estão com menos poder de compra, sendo impactadas por um momento grave da crise sanitária e econômica e, muitas vezes, sem poder contar com uma rede de apoio porque elas já foram acionadas no passado.
Queda na arrecadação de doações e aumento no número de pessoas em busca de ajuda
Vaquinha permanente de arrecadação, campanhas em redes sociais e contato direto com antigos doadores. Essas são as estratégias que o Misturaí, ONG que fornece três refeições para pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade, lançou mão para tentar manter um fluxo regular de entrada de donativos. Contudo, apesar dos esforços, o número de alimentos recebidos é menor do que a necessidade, conta a voluntária Simone Otto.
O que percebemos é que, além da população de rua, cresceu de maneira expressiva a quantidade de pessoas que têm casa, que moram de aluguel social, mas que nos procuram para tomar café da manhã, da tarde e pegar quentinha porque estão sem emprego, sem uma forma de obter renda
SIMONE OTTO
Voluntária da ONG Misturaí
— O que percebemos é que, além da população de rua, cresceu de maneira expressiva a quantidade de pessoas que têm casa, que moram de aluguel social, mas que nos procuram para tomar café da manhã, da tarde e pegar quentinha porque estão sem emprego, sem uma forma de obter renda. Com a piora da pandemia nesse início de ano, sinalização de bandeira preta na cidade, redução do auxílio emergencial e aumento no preço dos alimentos, as pessoas ficam sem alternativa — relata Simone.
A voluntária conta que a média de marmitas servidas ficava entre 350 e 400. Contudo, essa realidade mudou de meados de dezembro para cá:
— Esse número caiu para 250 marmitas. Isso é o que conseguimos servir hoje. Acredito que as pessoas cansaram da pandemia, ficaram inseguras e nosso estoque minguou. Estamos em um momento delicado, de grande insegurança para dezenas de pessoas que vivem a instabilidade de não saber se vão conseguir fazer a próxima refeição. Por isso, qualquer ajuda é bem-vinda (veja aqui como ajudar).
No Banco de Alimentos do Estado, a arrecadação também sofreu retração enquanto a quantidade de pessoas em busca de alimentos subiu. Desde julho passado, o ritmo não é mais o mesmo, mas a necessidade das pessoas aumentou, diz Fernando da Rosa, gerente da instituição:
Ao atendermos uma instituição, destinávamos comida para 300 crianças que faziam parte da entidade. Com a paralisação das atividades, essas crianças ficam em casa. Então, aquela única criança atendida virou uma família inteira
FERNANDO DA ROSA
Gerente do Banco de Alimentos do Estado
— Ao atendermos uma instituição, destinávamos comida para 300 crianças que faziam parte da entidade. Com a paralisação das atividades, essas crianças ficam em casa. Então, aquela única criança atendida virou uma família inteira. Se antes doávamos 300 quilos de alimentos para uma instituição, agora precisamos encaminhar 1,2 mil quilos para que a criança e a família dela tenham o mínimo.
Rosa destaca ainda que a incerteza em relação à economia é agravante e que qualquer tipo de contribuição é válido. Além do pedido de maior engajamento da população, Gilmar da Luz, gerente de operações do Banco de Alimentos, pede atenção ao prazo de validade dos mantimentos doados (veja aqui como doar para o Banco de Alimentos).
Uma das entidades beneficiadas pelo Banco de Alimentos é o Abrigo João Paulo II, que acolhe crianças, adolescentes, jovens adultos com deficiência e mulheres vítimas de violência. Com 26 unidades espalhadas entre a Capital e Viamão, receberam 290 quilos de alimentos na quarta-feira (7), que vão beneficiar 260 pessoas. (Veja aqui como ajudar o Abrigo João Paulo II.)