Estaria próxima a extinção do dinheiro em espécie?
Ainda que, no ano passado, em termos globais, já tenham sido efetuados mais pagamentos por meio eletrônico do que no vil metal, Gustavo Noman, diretor de Relações Governamentais da Visa do Brasil, não acredita que a extinção do papel-moeda esteja próxima. Um dos maiores impedimentos seria cultural. Para muitas pessoas, principalmente fora dos grandes centros urbanos, o dinheiro em espécie ainda é preferido e predomina.
— Em cidades do interior, aceitarem cartão não é tão comum assim. As pessoas preferem não usar meios eletrônicos. Acredito que o fim do dinheiro vai acontecer, mas vai levar um tempo. Mesmo a Suécia, talvez o país mais próximo do fim do dinheiro, não está prevendo acabar com a moeda nos próximos anos. Mas lá há uma mudança cultural muito grande. Tem a história de pessoas em situação de rua que recebiam de uma ONG um jornal para vender, mas não estavam mais conseguindo vender porque ninguém andava com dinheiro. Esses moradores ganharam maquininhas de cartão, e as vendas aumentaram de forma absurda. Chegará um momento em que as pessoas não vão ver mais sentido em ter dinheiro de papel — diz Noman.
Entre os países empenhados em instaurar uma sociedade sem cash estão justamente os dois mais populosos do mundo, China e Índia, que somam 2,7 bilhões de pessoas, mais de um terço da humanidade.
Na Índia, trata-se de política oficial. Em 2016, o governo retirou de circulação as duas cédulas de maior valor (de 500 e de 1.000 rúpias), que representavam 86% do dinheiro em circulação. Em paralelo, lançou o programa Cashless India, descrito como uma iniciativa para transformar o país em uma economia digital, sem papel e sem dinheiro vivo. Em um país com centenas de milhões de pobres sem acesso a meios digitais, a medida gerou caos, mas deu origem a uma gigantesca indústria de novas formas de pagamento – há atualmente 900 milhões de cartões ativos no país e espera-se que, em 2023, as plataformas de pagamento móvel movimentem US$ 1 trilhão (mais de R$ 4 trilhões). No período, o número de locais que aceitam pagamentos digitais aumentou de 1,5 milhão para mais de 10 milhões.
Nas grandes cidades chinesas, a forma mais usual de pagamento é por meio dos aplicativos de celular WeChat e Alipay. Segundo dados oficiais, em 2017 já havia 469 milhões de usuários registrados, 31,2% a mais do que no ano anterior. No mesmo período, as transações com celular passaram de 55,7% para 67,5% do total. Os números continuam em crescimento acelerado, e o dinheiro em espécie praticamente deixou de ser usado em muitos centros urbanos, a ponto de visitantes estrangeiros encontrarem-se na situação de não conseguir comprar nada no país.
Nas metrópoles, há mendigos e músicos de rua munidos de leitores de QR code para receber contribuições digitais. As autoridades, no entanto, têm questionado a legalidade de recusar pagamentos em espécie e manifestado preocupação com estratos da população que estão alijados, principalmente entre os mais velhos e nos meios rurais, onde há 200 milhões de chineses sem contas bancárias. Relatório de 2017 do Grupo Consultivo para Assistência aos Pobres indica que 70% da população do campo não têm acesso a plataformas online.
Não é nesses gigantes, porém, mas em um país de apenas 10 milhões de habitantes (menos do que a população gaúcha), que o dinheiro de papel está mais perto de desaparecer. Na Suécia, até os bancos se tornaram “cash free” – mais da metade das agências já não aceita depósitos ou permite retiradas, o que teve como subproduto uma queda acentuada nos roubos a esses estabelecimentos, de 210 em 2008 para apenas dois no ano passado.
Os bancos são, aliás, os grandes incentivadores da morte do dinheiro vivo. Em 2012, os seis maiores do país se juntaram para desenvolver uma plataforma virtual de pagamentos, chamada Swish, que é utilizada por ampla maioria dos suecos e domina as transações. Cédulas e moedas passaram a representar apenas 1% da economia (a média europeia é 10%), e mais de 4 mil pessoas já implantaram chips na mão para agilizar ainda mais os pagamentos, concretizados com um mero aceno.
No país escandinavo, o comércio não é obrigado a aceitar pagamentos em espécie, e cada vez menos comerciantes aceitam-nos. Esse novo modelo de sociedade, onde bancos e lojas não querem mais lidar com dinheiro físico, foi a princípio aplaudido e encorajado, mas nos últimos tempos começaram a surgir críticas e temores.
A Organização dos Aposentados da Suécia foi uma das primeiras entidades a se insurgir, protestando contra a rapidez da mudança e afirmando que mais de 1 milhão de pessoas não se sentem à vontade para usar smartphones e tablets para movimentações financeiras. Também foram levantadas objeções como a dificuldade de acesso por parte de imigrantes e deficientes, o aumento do poder dos bancos em detrimento do poder do Estado, as tarifas envolvidas nas operações de débito e crédito, o uso dos dados de quem paga via celular para venda de publicidade, o desenvolvimento de novos tipos de golpes e crimes e os riscos que poderiam advir de uma pane nos sistemas elétricos e de internet, de uma ação de piratas virtuais ou em caso de uma guerra.
— Se Putin invadisse a Suécia, tudo o que ele precisaria era desligar o sistema de pagamentos. Nenhum outro país sequer pensaria em se submeter a esse tipo de risco — afirmou Björn Eriksson, ex-presidente da Interpol, ao jornal britânico The Guardian.
Eriksson é o fundador do movimento Rebelião do Dinheiro, que defende a preservação da moeda física, e argumenta que o processo de extinção do papel-moeda não é puxado pela sociedade, mas por bancos e operadoras de cartões interessados em diminuir seus riscos e aumentar lucros. Eriksson também é dirigente da associação sueca de empresas de segurança privada, que congrega transportadoras de valores – um dos setores que estariam ameaçados em caso de fim do dinheiro.
Em meio a tais discussões, uma comissão especial foi criada no Parlamento da Suécia para estudar esses temas, e o Banco Central sueco, conhecido como Riksbank, publicou no mês passado um relatório sobre as implicações de extinguir o dinheiro vivo.
“Os métodos de pagamento digital estão eliminando o papel-moeda”, observa o documento do Riksbank. “A digitalização facilita os pagamentos, mas também cria riscos que precisam ser gerenciados. O Riksbank, portanto, precisa acompanhar os desenvolvimentos e modernizar sua moeda e seus sistemas”.
O banco informa no relatório estar estudando a possibilidade de lançar a e-coroa, uma moeda eletrônica que permita o acesso ao dinheiro emitido pela instituição estatal mesmo em um futuro sem cash. O Riksbank também afirma pretender que todos os pagamentos ocorram através de seus sistemas, para proteger a estabilidade e a eficiência da economia, e coloca o pé no freio no atual processo de extinção da moeda física: “Algo deve ser feito para desacelerar o rápido decréscimo do uso de dinheiro vivo”.
O Banco Central do Brasil, por sua vez, considera que um cenário de extinção do dinheiro em espécie “dificilmente será visto no curto e no médio prazo”, por questões relacionadas “à disponibilidade de infraestrutura (como acesso a rede de dados móveis por meio do uso de telefones celulares), ao grau de formalidade da economia, à cidadania financeira e a hábitos de uso de meios de pagamento”. Ainda assim, a instituição mantém uma política de incentivo à utilização de meios eletrônicos.
Uma das razões é o custo. Fazer dinheiro é caro. Só nos últimos três anos, o BC gastou R$ 2 bilhões adquirindo cédulas e moedas junto à Casa da Moeda. Outros R$ 450 milhões escoaram em despesas como transporte e segurança. O banco também cita estudos segundo os quais, devido aos custos mais elevados do pagamento em papel, a preferência por moedas digitais poderia representar uma economia anual de até 1% do PIB. “Um maior uso de meios eletrônicos de pagamento, em relação ao uso do dinheiro em espécie, aumenta a eficiência do mercado de pagamentos de varejo e, consequentemente, da economia como um todo”, afirmou o BC, em resposta a questionamento de GaúchaZH. “Meios de pagamento eletrônicos, além de serem rastreáveis, são menos custosos, mais seguros, mais ágeis e mais convenientes do que o dinheiro em espécie. O processo de eletronização, contudo, não implica a extinção do dinheiro em espécie”.