Você pode achar que isso é algo distante, mas a verdade é que o dinheiro em espécie pode estar com os dias contados. Já há inclusive projeto de lei para tirar notas e moedas de circulação, extinguindo o dinheiro vivo.
Trata-se de uma mudança histórica, que altera uma cultura desenvolvida ao longo dos séculos. Para resolver dificuldades inerentes ao troca-troca de mercadorias, muitos anos atrás, a humanidade foi desenvolvendo meios de pagamento mais universalmente aceitos. No tempo do Império Romano, por exemplo, pagava-se com sal – daí o termo salário. No século 17, a cachaça feita com o bagaço da cana-de-açúcar produzida no Nordeste era a moeda com que se compravam escravos na África, que por sua vez atravessam o Atlântico para trabalhar nos canaviais e produzir, além do açúcar, mais cachaça para comprar novos escravos. E houve o ouro, que era aceito em troca de qualquer mercadoria.
— Mas o ouro é pesado. As pessoas passaram a trocá-lo por papel-moeda, que era mais leve e prático. O dinheiro permitia ampliar o espectro de troca. O que estamos vendo hoje, com a migração para os meios digitais de pagamento, é a continuação desse movimento. A modernidade vem trazendo formas de evitar carregar papel-moeda. Você tinha o cheque, que deu lugar ao cartão, que agora está sendo substituído pelo celular. Daqui a pouco, não vai ser nem celular, vai bastar uma impressão digital — observa De Losso.
O professor reconhece as vantagens de um eventual fim do dinheiro, citando a maior dificuldade de roubos, de lavagem de dinheiro e de transações ilegais, assim como a redução da informalidade. Mas também aponta efeitos negativos, que dizem respeito não apenas ao drama dos idosos pouco afeitos à tecnologia e à grande massa de brasileiros sem conta bancária, mas também à perda de privacidade. Em um mundo de pagamentos eletrônicos, todo gasto deixa rastro, seja ele num bar, num motel ou numa casa suspeita qualquer.
— O dinheiro digital dá mais segurança a quem paga e a quem recebe, mas deixa de haver privacidade. O indivíduo fica sujeito ao rastreamento de todos os recursos, pode ter a vida devassada por órgãos de controle, às vezes por razões infundadas, e vai ser fácil fazer isso. Podem existir consequências extremas: se imaginarmos um Estado totalitário, ele vai conseguir cortar os recursos de uma pessoa — alerta.
Mas, se o dinheiro em espécie for soterrado por outros meios de pagamento, talvez seja porque as vantagens dos outros meios de pagamento superaram as desvantagens. Os números sugerem qual é o pendor de brasileiros – e também de não brasileiros – a esse respeito. Ano a ano, cresce a quantidade e a proporção de gastos que são feitos sem dinheiro vivo. Só de 2016 para 2017, as transações globais sem papel-moeda cresceram 12%, um ritmo que deve se intensificar nos próximos anos. Essa tendência é favorecida pela ascensão do comércio online, em que o pagamento por cartão é a regra.
No Brasil, onde os estabelecimentos comerciais são obrigados a aceitar dinheiro vivo, a perspectiva é de que as transações com cartões pré-pagos, de débito e de crédito fechem em R$ 1,8 trilhão em 2019, um aumento de 17,5% a 19,5%, em relação ao ano passado. Conforme a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), a participação dos pagamentos digitais no consumo das famílias brasileiras deve corresponder a 43% neste ano.
As empresas de cartões, naturalmente, estão entre os grandes agouradores da morte do dinheiro vivo. Gustavo Noman, diretor de Relações Governamentais da Visa do Brasil, uma das gigantes do setor, apresenta a questão sem rodeios:
— O grande concorrente da Visa é o papel-moeda. Então a gente trabalha sempre para que as pessoas deixem de usar o papel-moeda e passem a usar o meio eletrônico, por todas as conveniências e vantagens que ele traz. Há cada vez mais pessoas percebendo que o dinheiro não é bom, não dá nenhuma vantagem que o meio eletrônico não consiga atender.
No ano passado, a empresa colocou em andamento o projeto Cidades do Futuro, que envolve trabalhar para aumento do uso dos cartões em 200 cidades que são polos regionais, mas usam pouco os pagamentos digitais – há 26 municípios gaúchos na lista.
A Visa está munida de bons argumentos para levar sua causa adiante. Recentemente, a empresa apresentou um estudo independente encomendado à Roubini ThoughtLab, intitulado “Cidades Sem Dinheiro em Espécie: Compreendendo os Benefícios dos Pagamentos Digitais”. O trabalho estimou o ganho financeiro que cidadãos, comerciantes e governos de cem cidades teriam se toda a sua população alcançasse o mesmo nível de uso que os 10% que mais utilizam pagamentos digitais. Chegou a um benefício líquido anual de até US$ 470 bilhões (cerca de R$ 2 trilhões). Em São Paulo, seriam US$ 11 bilhões (cerca de R$ 45 bilhões). O estudo leva em conta também os custos da adoção do pagamento por meio eletrônico.
A mesma metodologia foi aplicada pela Visa a Porto Alegre, gerando estimativa de um ganho anual superior a R$ 5 bilhões, caso toda a população usasse tanto o cartão quantos os 10% mais afeitos à tecnologia. Desse montante, R$ 332 milhões seriam ganhos dos consumidores – o equivalente a R$ 220 per capita. Segundo a Visa, foi calculado o que os consumidores ganham ao evitar roubos, tarifas bancárias e filas, por exemplo.
O poder público, por sua vez, poderia ganhar mais R$ 2,4 bilhões ao ano em Porto Alegre, em decorrência da redução da informalidade, da facilidade de processamento de valores, do aumento com arrecadação de impostos e da redução de custos com segurança e Justiça, a partir da queda do número de roubos.
Para o comércio, o ganho seria de R$ 2,5 bilhões ao ano, segundo o estudo, por fatores como a queda de roubos, a economia de tempo de trabalhadores em atividades como contagem de dinheiro e preparação de troco e a diminuição do custo de processamento das cédulas e moedas.
— Na fila do caixa, quando você tem o pagamento em dinheiro, o tempo de processamento desse pagamento é maior do que o do cartão. Se a conta é de R$ 26,32, e o cliente dá uma nota de R$ 50, preparar o troco vai ser um parto. O cartão você passa e pronto. E ter troco é caro. As empresas às vezes têm de comprar troco e pagam R$ 0,20 por uma moeda de R$ 0,10. Além disso, o comércio vende mais quando estão disponíveis os meios digitais. Se você só tem uma nota de R$ 50, isso é o máximo que pode gastar. Mas se você tiver um cartão, consegue acessar toda a sua linha de crédito. Uma vez, eu estava em um supermercado e a conta da pessoa à minha frente deu R$ 51. Ele só tinha uma nota de R$ 50. O que ele fez? Excluiu uma lata de batatas fritas de R$ 10. Nesse caso, o comércio perdeu 20% do valor da compra — diz Noman.
Estimativas internacionais apontam que, para cada US$ 1 recebido, o comércio gaste US$ 0,07 em processamento se o pagamento for em papel-moeda, ou US$ 0,05, se for por meio eletrônico. A diferença se explica porque, com dinheiro vivo, os gastos com segurança, envolvendo cofres e carros-fortes, são maiores.
É por esse tipo de dificuldade, explica o economista Rodrigo De Losso, que nos EUA, quando um cliente chega no caixa e apresenta um cartão de crédito ou débito, o funcionário pergunta se ele quer levar algum troco em dinheiro.
— A pessoa gasta US$ 100, mas pede para passar US$ 150 no cartão e recebe um troco de US$ 50 em dinheiro. Isso é interessante para o usuário, porque não tem custo, e para o comércio, porque quanto menos dinheiro ele tem em caixa, menos gasta com segurança — explica o professor.
Em nota, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirma não ter “uma previsão de quando o dinheiro em espécie vai deixar de ser usado”, mas ressalta que “os canais digitais ganham cada vez mais espaço como alternativa a operações com papel-moeda”. Conforme pesquisa da entidade, o número de transações bancárias feitas por celular em 2018 cresceu 24% em relação ao ano anterior – levando em consideração as transações com movimentações financeiras, o crescimento foi de 80%. Atualmente, de cada 10 transações, com ou sem movimentação financeira, seis são feitas por meios digitais (celular ou computador).
Além disso, segundo a Febraban, os aplicativos dos bancos tornaram-se o canal preferido dos brasileiros para fazer pagamento de contas, transferências de dinheiro e outras movimentações financeiras.
Em 2018, 2,5 bilhões de pagamentos de contas e transferências, incluindo DOC e TED, foram realizados por meio do mobile banking, que, pela primeira vez, superou o internet banking na preferência do brasileiro nessas operações.