Foi por meio da dança que a estudante Marielly da Cruz, 15 anos, contou uma das necessidades de seu lar: um telhado que proteja sua família. Moradora do bairro Restinga, em Porto Alegre, a jovem Marielly da Cruz, 15 anos, é integrante da Cia FlashBlack – grupo de dançarinos formados pelas Escolas Preparatórias de Dança (EPDs), projeto social da prefeitura que ocorre em cinco escolas da Capital. A estreia da companhia ocorreu em 4 de dezembro, com o espetáculo Nosso Corpo. Nele, Marielly apresentou uma coreografia solo, na qual pode expressar um pouco de sua história.
Em um dos momentos da apresentação, Marielly narra a situação de sua residência: "Hoje eu moro em uma casa que o telhado está prestes a cair... Há pouco tempo, deu uma chuvarada em Porto Alegre, que alagou a minha casa e eu fiquei sem cama para dormir". Com frases de esperança e resiliência, a jovem deseja um futuro com a dança que a permita dar condições melhores para sua mãe e demais familiares.
— Quando chove, nós levantamos os móveis, tudo que é possível, e esperamos passar. O telhado está muito ruim — afirma Marielly.
Além de telhas em péssimas condições, chão e paredes do imóvel também estão danificados.
A coreografia da jovem emocionou a plateia e, principalmente, professoras e voluntárias da EPD. Entre elas, a psicopedagoga Verônica Alfonsin, 54 anos, integrante do grupo Amigas da Poesia:
— Já tinha assistido a vários espetáculos dela. Mas, nessa estreia da companhia, ela dançou ao som de um áudio que falava de seus medos, preconceitos e desejos. Tocou muito a mim o momento em que conta do telhado que está caindo e que tinha chovido forte, deixando-a sem cama.
Hoje eu moro em uma casa que o telhado está prestes a cair... Há pouco tempo, deu uma chuvarada em Porto Alegre, que alagou a minha casa e eu fiquei sem cama para dormir
MARIELLY DA CRUZ
Estudante
Poucos dias depois da estreia, o grupo, comovido com a história da jovem, foi até a residência ver de perto a situação.
— Pessoas interessadas em ajudar, que perceberam a realidade da Marielly após a apresentação, decidiram visitá-la. A casa da família foi construída em meados de 1970 e, portanto, tem quase 50 anos. Marielly é uma bailarina destaque. Mesmo sendo nova, ela já está em um grupo profissional e quer ajudar sua família com o trabalho na dança. Ela não merece ter chuva entrando na sua casa — conta a coordenadora da EPD Ana Araújo, 55 anos.
Foi a partir dessa visita que surgiu, entre as professoras e voluntárias, a ideia de uma campanha para a reconstrução do telhado da casa da jovem.
— Estamos fazendo diversos orçamentos de material e mão de obra. Inclusive, em poucos dias de ação, já recebemos algumas doações em valores, cerca de R$ 2 mil, e em materiais de construção. Acredito que o valor total da obra ficará em torno de R$ 12 mil, sendo a troca do telhado, o madeiramento e a reforma de uma parede que está danificada. Qualquer ajuda será bem-vinda — afirma Ana.
Mãe foi surpreendida por campanha
A cuidadora de idosos Joana D'arc Soares da Cruz, 51 anos, mãe da Marielly, relembra que a apresentação da filha a surpreendeu:
— Foi pela dança que as pessoas tiveram noção da situação. Sempre fomos humildes, não tínhamos a intenção de pedir ajuda. Mas a campanha surgiu após o espetáculo e também foi uma surpresa para mim. Não é apenas uma necessidade, é uma situação de periculosidade.
Joana conta que vive no local há 48 anos. A casa era dos seus pais e ficou para ela. Além de Marielly, Joana tem mais três filhos e um neto, que também moram na residência.
— É uma casa que foi construída pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab), de quando a pasta fazia essas moradias. Mas não é só a minha casa que está nesse estado, outros moradores também passam pelos mesmos problemas. Mesmo com trabalho, não temos condições de suprir todas as demandas — afirma Joana.
"Quando danço meus problemas somem"
Segundo Marielly, sua paixão pela dança já tem nove anos e começou dentro da escola:
— A dança entrou na minha vida muito por acaso. Foi no colégio, quando conheci uma professora em uma oficina de dança. Ela me inspirou e me apaixonei pela arte. Quando danço, me sinto bem e segura, meus problemas somem. Vou levar a dança para o resto da vida.
Marielly, que já participava da EPD que funciona nas dependências da Escola Municipal Alberto Pasqualini, ingressou, neste ano, na Cia FlashBlack. O grupo de dança foi criado com o propósito de inserir os jovens negros da periferia no mercado de trabalho da dança.
Na trajetória como dançarina, a jovem recebeu alguns destaques. Entre eles, foi premiada pelo solo chamado Marielle presente, um reforço no sonho de ser profissional:
— Uma das pessoas que mais me fortalece é minha mãe, e ela não me deixa desistir. Nem ela, nem a dança. Eu quero, com a minha arte, ter retorno financeiro para ajudá-la e evitar que situações como a do telhado aconteçam.
Incentivo
A coordenadora Ana, que conhece Marielly há cinco anos, incentiva os jovens da EPD a sonhar:
— Quero que todos eles tenham sonhos e que possam ser realizados com a dança. No caso da Marielly, não quero que ela deixe a arte devido a uma futura necessidade de trabalhar.
Após terem participado uma palestra da companhia de dança Dance Theatre of Harlem, escola profissional americana de balé com sede em Nova York, Ana e Marielly sonham com a possibilidade de a jovem ir para o Exterior fazer o curso profissional de dança e uma audição na companhia.
— Vamos pleitear esse curso nos Estados Unidos. Conheço jovens com potencial, e a Marielly é um deles.
Organizadora da campanha, Verônica complementa:
— Para nós, ela não é só uma pessoa, ela é fruto de um grupo de dança que admiramos. Marielly é maravilhosa pelas pessoas que ela tem em volta. Para nós, ela é como um símbolo. Como o nome que leva, ela representa uma população adolescente de periferia que busca na arte um meio de expressão e reivindicação de espaço na sociedade.
Como ajudar
- É possível contribuir para a reconstrução do telhado por meio de transferências e depósitos nas contas bancárias. Informações sobre os dados necessários podem ser obtidas pelo WhatsApp (51) 99363-9390, com Ana Araújo.
*Produção: Caroline Tidra