Procriar é nossa mais antiga tradição, passada de pai para filho há milhões de anos. Por conveniência, contingência ou impossibilidade, alguns escaparam ao ditame ao longo dos séculos – com a contrapartida de virar alvo de olhares e comentários desabonadores. A atitude recriminatória permanece, mas há uma novidade: não ter filhos ganhou força como movimento e estilo de vida.
Em uma escolha consciente e sem culpa, muitos casais preferem abrir mão da prole para não abrir mão de outras coisas. Há também os que seguem esse caminho porque simplesmente não gostam de crianças – e não têm receio de admiti-lo. Existem ainda aqueles que preferem não sobrecarregar o planeta com mais gente. Nesse cenário, crescem e se multiplicam os grupos childfree (livre de crianças), que reúnem essas vertentes e outras, e até mesmo comunidades radicais, como a dos antinatalistas, partidários da ideia de que ninguém deve gerar novos seres humanos.
No Brasil, os lares sem pitocos apresentam tendência de aumento: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que a proporção de famílias formadas por casais sem filhos pulou de 15% para 20% em uma década, de 2005 a 2015. Uma delas é a da empresária de Porto Alegre Mariana Bacaltchuk, que tem 43 anos e está casada há duas décadas. Ela nunca quis ter filhos, decisão chancelada pelo marido.
— Nunca tive vontade de ser mãe. Ter filho é caro, exige muita dedicação de tempo, de energia, foco de vida. Somando essa falta de vontade, mais o meu estilo de vida, que é muito ativo, com esportes e viagens, mais a minha observação de como é a vida complicada que as mães levam, concluí que não deveria ter filhos. Porque não é para mim. Não é para todo mundo. Muita gente com um estilo de vida parecido com o meu vai no embalo de que tem de casar e ter filhos, e depois, não é que se arrependa, porque quando conhece o amor pelo filho não se arrepende, mas sofre — afirma Mariana.
O único momento em que ela esteve em dúvida sobre a sua opção foi ao completar 40 anos. Pressionada pelo tique-taque do relógio biológico, lançou-se em questionamentos: será que não vou querer mesmo? Mesmo que não queira, vale a pena arriscar para experimentar isso que todo mundo descreve como a experiência mais maravilhosa do mundo? Será que não estou me acovardando diante das dificuldades? Mariana refletiu, conversou com o marido, consultou amigos, abriu-se para a possibilidade de engravidar. No fim de tudo isso, a decisão foi cristalina:
— Vi que era definitivo, que realmente não queria.
A empresaria diz que, graças a sua escolha, consegue viajar três vezes ao ano com o marido e não tem dívidas. Se alguém lembra que não terá um filho para cuidar dela na velhice, responde que é verdade, mas que vai ter condições de pagar uma clínica de repouso. No entanto, reconhece que há perdas:
— Claro que eu perdi. Na vida, em todas as decisões que tomas, tu perdes e ganhas alguma coisa. Sempre. Ganhei algumas coisas e perdi outras. Assim como, se tivesse tido filho, eu também teria perdido umas coisas e ganhado outras. Perdi a experiência do maior amor do mundo, que a maioria das pessoas acha maravilhosa. Mas vou ter outras que elas não vão.
Os irmãos Priscila e Edgardo de Lima Pelaez também preferiram não aumentar a população de Porto Alegre – o que coloca em risco a própria continuidade da estirpe (eles contam com um terceiro mano, casado e sem filhos até o momento). Educador físico e empresário, Edgardo tem 37 anos e está casado há sete. A mulher é três anos mais velha. Ele nunca desejou uma criança, mas toparia se fosse o desejo dela. Conversaram e resolveram não gerar.
— Eu gosto de criança, gosto de brincar, pego no colo. Só não quero ter uma. Pode ser um pensamento meio egoísta, mas ao mesmo tempo dá insegurança colocar alguém no mundo no momento que a gente vive. No condomínio onde eu moro, as crianças estão presas, ficam em um parquinho. Um filho não teria a infância que eu tive — lamenta.
A enfermeira Priscila, 40, nunca conseguiu enxergar-se como mãe, e a objeção a ter filhos foi um fator importante para o fim de um casamento de três anos – o ex-marido queria descendência. Ela conta:
— Desde a adolescência eu já não me via como mãe, mas bati o martelo aos 38 anos. Vi que um filho não se encaixava no jeito como eu gosto da minha vida hoje, nem na vida que eu quero ter no futuro. Com uma criança, eu não conseguiria estar no meu trabalho e ter a vida saudável que eu tenho. Não é por eu não gostar de criança, é por estilo de vida. Aliás, o meu sonho é ser tia. Porque a tia fica com a parte boa do bolo, com a cobertura.
Pressão social sobre mulheres, as “traidoras do destino”
No começo de agosto, em sua coluna em GaúchaZH, o psicanalista Mario Corso resolveu abordar o tema, preocupado por perceber, no consultório, que muitas mulheres relatam ser vítimas de pressões em consequência da opção de não ser mães. As cobranças e críticas fazem-nas julgar que há algo de errado com elas – o que motiva sofrimento.
No texto, o psicanalista argumenta que não querer ter uma criança é uma decisão de foro íntimo, que nem deveria ser assunto. Mas lamenta que não é isso que acontece na sociedade, um pouco em relação aos homens e principalmente em relação às mulheres. “As mulheres que podem ter filhos são vistas como traidoras do destino se ousam negar-se à missão reprodutiva”, escreve Corso.
Para o psicanalista, a pressão social pela procriação faz parte de uma herança patriarcal que procura restringir a mulher à função materna. Mas ele acredita existirem outros fatores em ação. Lembra que a reprovação a quem não gesta costuma vir, com frequência, de outras mulheres. A suspeita dele é que por trás disso existam motivos inconfessados, como a percepção de que a maternidade não garante o sentimento de feminilidade esperado e de que ter filhos pode não ser tão espetacular como se pinta.
— Quem teve filhos costuma tentar naturalizar para si mesmo que o filho é uma grande maravilha. Mas às vezes não é. Imagina se tu tiveste filhos e dá tudo errado. Tu não vais voltar atrás. Então tu só podes transformar aquela tua missão na coisa mais importante da humanidade. Pode existir uma inveja da liberdade de quem não tem filhos. Porque os casais sem filhos têm muito mais dinheiro, viajam o triplo, têm mais coisas. Ter um filho é uma escolha limitante. Eu fiz essa aposta e não me arrependo, mas tem pessoas que se arrependem e não podem dizer isso. Precisam de terapia para elaborar a questão e se autorizar secretamente a dizer: esse cara estragou minha vida.
Corso enfatiza que não há nada de errado, nenhum problema, com quem prefere não ser pai ou mãe. Ele detecta um crescimento dessa opção, que atribui à perda de força das tradições. O que 50 ou 60 anos atrás era considerado natural, a ponto de os casais nem se questionarem, hoje está no campo da liberdade de escolha. E vários motivos podem justificar a decisão de manter a família em duas pessoas: não ter vocação, não gostar de criança, não querer reviver a relação ruim experimentada com os pais ou apenas desejar outro tipo de vida.
— Filho é coisa muito séria. Se está em dúvida, não faz. É para quem realmente quer. Tu podes optar. O ser humano pode dizer não à biologia. É uma vida mais autocentrada, mas o sujeito pode escolher isso, não pode? — questiona.