No grupo das pessoas que não têm filhos pelo simples fato de não gostarem de crianças, encontra-se a cirurgiã-dentista Patrícia Comberlato Zambon, 31 anos, casada com o médico Juan Zambon, 35. Ela diz que o casamento entre eles só pôde dar certo porque o marido também não pensava em gerar descendência. Um relacionamento anterior da dentista terminou, após três meses, porque o namorado tinha um filho pequeno.
— Aí foi horrível. Peguei e saí fora. Abobada, eu chegava a pensar assim: tem tanto pai que abandona os filhos e esse que eu peguei para namorar só fica atrás desse pirralho... A gota d’água foi uma noite em que dormi na casa dele, o menino estava lá e chorou a noite toda. No outro dia, falei: “Olha, não dá. Vou embora. Não gosto de criança, não tenho paciência e não quero isso aí” — conta Patrícia.
A aversão data da adolescência e era muito pior naquela época. Ela não faz rodeios: detestava crianças. Hoje, já não chega a tanto. Um dia, o marido levou-a a uma maternidade, e ela até conseguiu ver fofura nos bebês:
— Ele falou: “Tu vais ver que os pequeninhos são mais legais”. Aí cheguei lá e, realmente, dos bebês eu gostei. Choram, claro, porque não têm como explicar o que precisam. Então bebê agora eu gosto. Mas quando começa a crescer e a caminhar, meu Deus! Meu Deus do céu! Eles ficam muito chatos! Começam a fazer birra, começam a chorar por bobagem. Eu detesto! Quando falo isso, as pessoas me acham estranha. Todo mundo pensa: “Ai, credo, que horror!”. Mas não consigo achar graça. Se as crianças começam a falar aquelas palhaçadas de que todo mundo gosta, eu olho e penso assim: “Que coisa mais idiota”. Se me mandam vídeo de criança cantando, então... Criança cantando eu acho uó.
Por causa dessa característica, que já a fez abandonar restaurantes onde algum pequerrucho fazia fiasco e também já estragou sessões de cinema abrilhantadas pela conversalhada ou o choro infantil, Patrícia tem medo de engravidar. As amigas dizem que, se acontecer, ela vai adorar o bebê. Mas ela sente que não tem as condições necessárias para ser uma boa mãe.
— Com minhas amigas, posso conversar tranquilamente sobre isso, porque sei que não vão dizer: “Que horror, como tu és ruim”. Elas dizem que é impossível eu não gostar. Mas olha quantos casos há de mães que abandonam ou fazem coisas bem piores do que isso. Como ter certeza de que, só por que tu tens um filho, tu vais gostar dele?
Grupo Somos Childfree já reúne 221 mil seguidores no Facebook
Recentemente, as amigas da dentista “inventaram todas de ter filho”, o que faz com que, mesmo gostando muito delas, Patrícia sinta-se escanteada nas conversas. O assunto é sempre criança.
— Estão tão imersas que não conseguem falar de outra coisa. Para mim, é chato – lamenta.
A sorte dela foi ter descoberto no Facebook o grupo Somos Childfree, que reúne 221 mil seguidores. “Se você não quer ter filhos, não gosta de crianças e nem de adolescentes, essa é a sua página! E lembrando que aqui crianças não são permitidas, e o silêncio, dinheiro e paz são apreciados por todos”, diz o texto de apresentação. Entre as postagens, abundam memes e frases do tipo “Sextou com S de sem filhos, S de sossego, S de sai criança”.
A página surgiu em 2014 e é uma criação da comissária de voo Ana Carolina Guimarães, 28 anos, moradora de Campinas (SP). Ana apoia o antinatalismo – ou seja, que as pessoas deixem de ter filhos – e diz pensar todos os dias em fazer um procedimento de esterilização. Também tenta convencer o namorado, com quem está há dois anos, a submeter-se a uma vasectomia.
— O grupo tem gente com várias ideias. Uns não querem ter filhos para não destruir mais o planeta, outros querem dar prioridade ao emprego e aos estudos. Não é um movimento que não gosta de crianças. Alguns têm esse pensamento, mas não é predominante. E a maioria é favorável ao antinatalismo, porque vemos a procriação como algo que não é justo para o momento que estamos vivendo. A Amazônia está pegando fogo, a água está acabando, o planeta está poluído — explica Ana Carolina.
O movimento é multifacetado, como a comissária de voo sugere. No caso do Somos Childfree, há uma ênfase em divulgar métodos contraceptivos. Mas o termo “childfree” também virou sinônimo, no Brasil, de lugares que não aceitam a entrada de crianças – o que acabou se tornando uma pauta de várias das comunidades existentes. Um dos grupos, a Associação Childfree Brasil, que adota o lema “que a infertilidade esteja com todos nós”, publicou uma série de perguntas e respostas com o objetivo declarado de “desmistificar” o conceito.
O questionário informa que ser “CF” é um estilo de vida que consiste em viver livre de crianças, mas vai bem além, como revelam algumas das questões abordadas:
“CFs odeiam crianças?
Não podemos responder por todos os CF do mundo. A maioria não gosta de crianças, no sentido de não querer conviver com elas, não saber lidar com elas, não ter muita paciência com elas. Odiar é uma palavra que traz consigo a necessidade de causar mal e ser CF não tem nada a ver com causar mal a crianças.
Mas há CFs que maltratam crianças!
Há pessoas que dizem amar crianças que as maltratam. O que acontece é que o ser humano é podre mesmo. Em todo cesto há maçãs podres. E por conta de alguns o todo paga. Entre os CF que conhecemos há as pessoas mais contra a violência e maus-tratos contra crianças de todo o nosso convívio. Uma de muitas razões para sermos CF é não colocar um ser indefeso em um mundo tão hostil.
Por que vocês usam termos como ‘parideira’ e ‘catarrento’?
Nós usamos para diferenciar entre boas e más mães e pais. Aquelas mães que dão educação, limites, carinho, uma boa vida para os filhos são mães, pura e simplesmente, já para aquelas que não estão nem aí para os filhos utilizamos esse termo. Parideira também pode designar a mulher que não tem ainda filhos, mas que romantiza maternidade e fica “cagando regra” na vida alheia. Catarrento é para designar o típico filho da “parideira”: aquela criança que você vê suja, que só come salgadinho, sem limites, que fala o que bem entende sem os pais tomarem uma atitude e que volta e meia quando pequeno está com a cara suja – geralmente de, tcharam, catarro. E os homens não “se salvam” da terminologia. Existe homem parideiro também.”
“Adoro crianças, só não quero ter de lidar quando começa o choro”
A advogada de Osasco (SP) Josie Teixeira dos Santos, 40 anos, criadora da página Childfree Brasil, diz que as divisões no movimento fazem com que ela seja atacada e malvista por grupos que considera “duros”. Quando começou a pesquisar o assunto, conta, deparou mais com pregação do ódio a crianças do que desejo de não ter filhos. Contrária ao antinatalismo, queria tirar do movimento a pecha de ojeriza aos pequenos.
— Adoro crianças. Tenho sete sobrinhos e tenho muito carinho por eles. Só não quero ter de lidar quando algum deles começa a chorar desesperadamente. Não quero ser aquela pessoa que tem a obrigação de acalentar esse choro. Mas a minha intenção não é mudar mentalidade de ninguém, é trazer pessoas que já têm a mesma ideia de não ter filho para um acolhimento que não encontramos. Tento me preservar ao máximo de criticar mãe. Se quer ter filho, que tenha. Não me importo com a gravidez de ninguém, não me importo que tenham 30 filhos. Por isso, a minha página é odiada por algumas pessoas do meio childfree — lamenta Josie.
Foi aos 35 anos que a advogada percebeu que não queria prole. Tinha terminado um namoro e sofreu um baque: “Não vou mais ter filhos, por causa da idade!”, pensou. Mas começou a se questionar e percebeu que, na verdade, não tinha vontade de gerar uma criança e que só estava seguindo a corrente.
Para Josie, foi libertador chegar a essa concepção. Ela se tornou mais segura, inclusive nos namoros. A pressão de arranjar um companheiro, de ter que dar certo e de precisar fazer tudo isso em prazo hábil, para poder chegar ao troféu final de produzir um bebê, desapareceu.
— Eu me esforçava para me enquadrar num relacionamento em que eu nem estava feliz, por medo do relógio biológico. Hoje, tenho a paciência de esperar o relacionamento acontecer, as coisas fluírem, porque eu não tenho prazo de validade — relata.
Quando conhece alguém, já no primeiro encontro Josie avisa que não quer crianças. Em geral, a reação é negativa. Os pretendentes ficam chocados, perguntam se ela tem algum trauma de infância, insistem que ela vai mudar de ideia, que vai se arrepender quando ficar velha. Josie perdeu vários relacionamentos. Mas a estratégia deu certo com o homem com quem está saindo. A família, no entanto, não dá apoio.
— Na cabeça dos parentes mais idosos, sou uma frustrada e encalhada que, quando encontrar alguém, vai querer ter filho. Gostaria muito que entendessem que minha opção não vai mudar. No meu estilo de vida, não tem espaço para uma criança. Gosto de viajar, de ter a casa silenciosa, de ter liberdade de ir e vir sem me preocupar com outra pessoa. Mas não respeitam, não pensam no meu bem-estar. Dizem: “Ah, Josie, quero ver você engravidar, aí vou rir na sua cara”. Fazem piadinhas, do tipo: “Você vai ver, Deus vai te castigar mandando um filho”. Isso é desagradável. Quando uma mulher está grávida você não vira para ela e diz: “Tomara que você aborte”.
Nem todos estão preparados para serem pais, diz terapeuta
A escolha de pessoas como Josie contrasta com a daqueles casais que não conseguem ter filhos, sofrem com isso e chegam a gastar fortunas em técnicas de reprodução assistida para realizar esse sonho. Esse é o público a que a terapeuta e doutora em direito da família Sylvia Nabinger se dedica. Ela trabalhou 35 anos no Juizado da Infância e da Juventude e sempre esteve ligada a questões de adoção e reprodução humana. Para ela, o desejo de ter filhos é algo inerente ao ser humano.
— É uma coisa natural, primitiva e muito forte em todos nós. É uma luta contra a morte, vamos dizer assim. Vou desaparecer, mas meus genes estão salvos no meu filho, que por sua vez vai continuar a linhagem familiar. E não é só uma transmissão genética. É a transmissão das tradições, da cultura, da religiosidade. Tu te prolongas através disso. No caso da adoção, a sensação de continuidade se dá pela educação da criança.
Sylvia foi mãe três vezes e tem seis netos. Diz que nada lhe deu tanta satisfação como ver os próprios filhos cuidando dos filhos deles. Para ela, a paternidade e a maternidade são uma experiência formidável, um enriquecimento da vida, a maior obra que um ser humano pode erigir. Apesar disso, ela tem notado que há muita falta de cuidado. Em São Paulo, tomou conhecimento de escolinhas infantis que ficam abertas das 5h às 22h. Entregam a criança já de banho tomado, jantar consumido e pijama vestido. Os pais só têm o trabalho de colocar na cama. Na manhã seguinte, bem cedo, devolvem o filho com a mesma roupa – inclusive a mesma fralda. Como as famílias não preparam comida, essas escolinhas já vendem alimento pronto para o fim de semana. Na segunda-feira, os pequenos chegam insuportáveis, porque passaram os dias de folga em casa, mexendo em eletrônicos.
— Quem age desse jeito, será que queria ter filhos? Precisa ser uma escolha consciente. Tem de ser para dar amor — afirma Sylvia.