“Mas afinal, o que eu tenho? O que é isso que me faz ser quem eu sou? Uma coisa é certa: eu sou diferente e é essa diferença que me faz único. Eu não preciso ser consertado, eu não preciso ser igual a você.”
São alguns dos questionamentos e algumas das reflexões que aparecem no documentário Meu Nome É Daniel, dirigido e protagonizado por Daniel Gonçalves. Com uma narração direta e com sacadas de humor, o filme foge do lugar-comum e mostra a trajetória de seu realizador, cuja coordenação motora é afetada por uma deficiência rara nunca diagnosticada. Com estreia no circuito brasileiro prevista para agosto, a obra ganhou o prêmio do Festival Internacional de Cine de Cartagena, na Colômbia, o que a qualificou para disputar uma indicação ao Oscar, e foi exibida em maio em Porto Alegre, com a presença do diretor de 35 anos, homenageado da sexta edição do Cine Caramelo – festival de cinema infantojuvenil que aborda acessibilidade e inclusão. O evento ocorre até 15 de junho na Sala Redenção, na Sala Paulo Amorim e no Instituto Ling, com itinerâncias em escolas da rede municipal e também no Centro de Cultura de Três Coroas. A programação completa pode ser conferida no site cinecaramelo.com.br.
A ideia do primeiro longa de Daniel surgiu depois que um curta dirigido por ele – e que também abordava sua paralisia – viralizou nas redes. O morador da cidade do Rio de Janeiro percebeu que tinha muito mais a contar e começou a buscar financiamento coletivo. No filme, ele usa principalmente vídeos gravados pela família durante sua infância e adolescência, como ele ensaiando os primeiros passos em casa, mesclados com cenas de seu cotidiano atual. Daniel e sua mãe conduzem boa parte da narrativa.
— A grande novidade é que, pelo menos no Brasil, é a primeira vez que uma pessoa com deficiência faz um filme sobre sua própria vida. Porque normalmente nós somos retratados por pessoas sem deficiência, e eu acho que assumir esse lugar de fala é uma coisa muito importante — afirma o diretor.
Normalmente, somos retratados por pessoas sem deficiência, e eu acho que assumir esse lugar de fala é uma coisa muito importante.
DANIEL GONÇALVES
DIRETOR DO DOCUMENTÁRIO “MEU NOME É DANIEL”
Daniel acredita que as pessoas com deficiência costumam ser representadas sob dois prismas: como coitados e incapazes ou, no outro extremo, como super-heróis. Para ele, mitificar o personagem é um equívoco – a torna uma figura inalcançável. Procurou evitar isso no filme. Em uma cena, por exemplo, em que tenta fritar um ovo, dispensou a música de fundo para não “levar a uma emoção fácil”. Na hora da montagem, também deixou de fora depoimentos de pessoas que não eram da família e que o tratavam como herói.
— Minha vida não foi mais difícil do que a de uma pessoa sem deficiência. Acho que foi diferente. De uma certa forma, se todos tivessem acesso às coisas que eu tive, provavelmente também estariam no lugar em que eu estou ou, pelo menos, fora desse lugar invisível, onde normalmente as pessoas com deficiência estão — pondera o diretor.
O clichê da “mãe guerreira”
A escritora gaúcha Lau Patrón, que participou do bate-papo sobre inclusão com o diretor em Porto Alegre, concorda que as pessoas com deficiência ainda aparecem muito pouco nas produções culturais – ainda mais se considerarmos que 24% da população brasileira tem algum tipo de deficiência. A publicitária é mãe de João, sete anos, que tem a raríssima Síndrome Hemolítico Urêmica Atípica. Para ela, os filmes abusam de clichês.
As nossas vidas não podem ser instrumento para os outros se sentirem de bem com a vida deles. Isso é muito cruel.
LAU PATRÓN
AUTORA DO LIVRO “71 LEÕES”
— A pessoa vira o exemplo para os outros se sentirem bem com as próprias vidas. Mandam um vídeo no grupo do WhatsApp de uma menina que não tem uma das pernas correndo. E aí colocam: “Se ela consegue, qual é a tua desculpa para não correr hoje?”. As nossas vidas não podem ser instrumento para os outros se sentirem de bem com a vida deles. Isso é muito cruel — diz Lau.
A autora do livro 71 Leões, que fala sobre inclusão, diz que até mesmo a figura das mães de pessoas com deficiência não escapa do lugar-comum nos roteiros. São normalmente retratadas como a “mãe guerreira”, que abdica de tudo. A expectativa é de que ela viva no sofrimento e, quando consegue sair dessa situação, acaba julgada, afirma a escritora.
Daniel e Lau acreditam que, para mudar esse cenário de estereótipos, o caminho começa na concepção da obra e na formação da equipe, que deve priorizar a inclusão e a diversidade.
— A gente precisa trazer essas pessoas para dentro, não tem mudança que não passe por isso. Diversidade é nossa força, não nossa fraqueza. Precisa ter diálogo para quebrar essa estúpida ideia do padrão que gera uma quantidade imensa de pessoas infelizes, que tentam se encaixar em caixinhas — defende a escritora.
O festival infantojuvenil de cinema de Porto Alegre ocorre até 15 de junho na Sala Redenção, na Sala Paulo Amorim e no Instituto Ling, com itinerâncias em escolas da rede municipal e também no Centro de Cultura de Três Coroas. A programação completa pode ser conferida no site cinecaramelo.com.br.
Para ver e ler
Daniel e Lau indicaram seriados e livros que abordam o tema da inclusão e provocam reflexão:
Atypical
Série que mostra a história de um adolescente autista em busca de sua independência. As duas temporadas estão disponíveis no Netflix.
Special
A série é escrita e protagonizada por Ryan O’Connell, um jovem gay com paralisia cerebral. A primeira temporada está disponível no Netflix.
Longe da Árvore
O escritor Andrew Solomon, diagnosticado com dislexia na infância, investiga a tensão entre identidade e diferença em famílias que lidam com algum tipo de deficiência.
Meu Amigo Faz iiiii
Livro infantil da jornalista Andréa Werner, mãe de um menino autista, que fala sobre a amizade de Bia com seu colega Nil, que tem alguns comportamentos diferentes.