Quando ingressou pela primeira vez no pátio de uma das unidades da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase), em Porto Alegre, em 2015, a então nova psicóloga da instituição, Fernanda Silva de Almeida, hoje com 32 anos, foi surpreendida ao ouvir o próprio nome ser chamado por um dos internos. Ao vê-lo, o reconheceu: o rapaz havia sido vizinho e era um dos meninos que, no passado, brincava com o irmão de Fernanda no bairro onde moravam, na Vila Colina do Prado, Jardim Carvalho, zona leste da Capital. Aquele momento, a psicóloga confessa, foi a virada na própria vida dela.
— Na semana em que eu começava no lugar que desejei trabalhar, acabei encontrando alguém da mesma periferia de onde eu vim, mas em situação totalmente contrária à minha. Tive a certeza de que havia chegado ao meu objetivo de ajudar a construir outras perspectivas para estes jovens, os fazendo perceberem que podem ter uma condição digna quando deixarem a medida socioeducativa — resume.
Acolhida
Mas a história de Fernanda começa ainda na infância, quando passava com a mãe, a doméstica Doralina Vargas, 53 anos, na frente da PUCRS e ouvia Doralina afirmar que a filha um dia estudaria na universidade particular. Sem dizer uma única palavra, Fernanda apenas pensava que jamais seria aluna daquela instituição por não ter condições financeiras. Na primeira tentativa de ingressar na UFRGS, em 2004, foi reprovada e frustrou-se ao ponto de perder o próprio rumo. A única certeza é de que queria ser psicóloga. O caminho da jovem começou a mudar no ano seguinte, quando ouviu a sugestão de um parente para se inscrever no curso Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMC), oferecido gratuitamente pela ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos.
— Não sabia o que era a Themis. Só aceitei fazê-lo porque queria me sentir ocupada e ainda receberia vale-transporte. Não tinha ideia do que vivenciaria nos meses seguintes. Era apenas uma jovem da periferia sem qualquer perspectiva futura, naquele momento. Quando cheguei no curso, me senti acolhida — confidencia.
Perspectivas além da realidade
Ao longo de 2005, durante o curso, Fernanda, que trabalhava num call center, foi apresentada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, aprendeu sobre feminismo e questões referentes ao racismo, descobriu que também tinha voz para exigir os próprios direitos e o que considera ter sido o mais importante: entendeu que poderia ter perspectivas de vida para além daquilo que a realidade dela lhe oportunizaria como mulher da periferia.
FERNANDA DE ALMEIDA
Compreendi que poderia me apropriar de outros espaços que não eram costumeiramente frequentados por pessoas nas minhas condições, como a universidade
Formada no JMC, decidiu criar com outras colegas um grupo para ofertar oficinas sobre gênero e sexualidade para adolescentes das periferias de Porto Alegre e Canoas. Ainda na Themis, ela conheceu um curso pré-vestibular destinado a jovens carentes. Em 2007, Fernanda conquistou via Enem uma bolsa de estudos de 100% no curso de Psicologia da PUCRS. Finalmente, os sonhos de mãe e filha haviam se concretizado.
Primeira da família a ingressar na universidade, Fernanda, que queria transformar o mundo, começou a mudança dentro da própria casa, incentivando a família. As duas irmãs se formaram em Direito e Educação Física e o irmão cursa Enfermagem.
O ingresso na Fase ocorreu em 2015, quando Fernanda foi aprovada em concurso público.
— Minha meta sempre foi entrar no serviço público porque acreditava que ficaria mais próxima de quem realmente precisa do meu trabalho, poderia me aproximar de um número maior de pessoas. O que me move é poder contribuir de alguma forma para que as pessoas tenham uma trajetória diferente, quem sabe, melhor — explica a psicóloga.
"Não se deixem limitar"
Fernanda deixa uma mensagem às jovens que, assim como ela, desejam ampliar os horizontes para além da periferia onde hoje vivem:
— Que elas não se deixem limitar pelo que a sociedade diz e espera de uma jovem de periferia, porque o que é dito e esperado de nós pode atacar nossa autoestima, nos fazer acreditar que por sermos da periferia não podemos desejar e sonhar com uma vida melhor. Que elas possam ter a profissão que desejam, que possam se casar, se assim o quiserem, que possam ter filhos ou não, mas que estas escolhas sejam suas próprias escolhas, e não as que os outros determinam para elas. Que estas jovens possam acreditar no seu poder de transformação e possam conquistar e ocupar o lugar que quiserem!
A favor das mulheres
* Criada em 1993 por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas, a Themis tem o objetivo de enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de Justiça, ampliando as condições de acesso.
* Pelo menos cem mulheres já se formaram no curso Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMC) em cinco edições. Neste ano, a entidade planeja abrir uma nova turma — com 20 vagas — no segundo semestre.
* Para participar do curso, é preciso ter entre 14 e 21 anos e ser moradora dos bairros da periferia de Porto Alegre.
* A ONG oferece vale-transporte para as participantes.
* Endereço: Rua dos Andradas, 1.137, sala 2.205, Centro de Porto Alegre
* Site: themis.org.br
* E-mail: themis@themis.org.br
* Fone: (51) 3212-0104