"Cadê o meu pai?" é a pergunta mais difícil que Ana Paula Sanches, 43 anos, já teve de responder. Foi formulada pela filha, Manuela, então com quatro anos, após deixar o Hospital de Pronto Socorro, onde recebera atendimento para um ferimento a tiro – a bala lhe perfurou o rosto, alojando-se depois no pescoço. O carro em que a menina estava com o pai, o empresário Marcelo de Oliveira Dias, 44 anos, fora confundido com o de um traficante e alvejado por criminosos no estacionamento do supermercado Zaffari da Avenida Cavalhada, em outubro do ano passado. Papai tinha "muitos dodóis", explicou Ana Paula, muito mais dodóis do que Manu. Para o desfecho irreversível, a publicitária teve de encontrar uma tradução:
– Os anjinhos chamaram ele.
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Pelos dias que se seguiram, enquanto nem mesmo Ana Paula conseguia assimilar o que havia ocorrido, surgiram outras perguntas desafiadoras.
– Mamãe, mas por que o meu pai morreu? Ele era tão novo... Por quê? Ele ficou tão pouco tempo aqui. Ele não podia ficar mais?
Ana Paula e Manuela se refugiaram, no primeiro mês, com familiares. As perguntas da filha foram marcantes também para ditar o ritmo do retorno à rotina: a menina sentia saudades da escola, de casa.
– Eu a via voltando para a vida. A impressão que tenho hoje é que ela se deu conta de que, sim, aconteceu uma coisa horrível na nossa vida, mas que, sim, a vida continua. Eu tirei forças não sei bem de onde – conta a publicitária.
A morte do companheiro com quem se relacionou por 23 anos transformou o cotidiano de Ana Paula nas maiores e nas menores coisas. Ela pouco consegue recordar da existência anterior ao início do namoro, quando mal havia saído da adolescência. Por mais que conte com o suporte da família e dos vizinhos, depara a todo instante com a subtração evidente: antes havia duas pessoas para planejar, tomar decisões e dividir responsabilidades, e hoje há apenas uma. Sozinha, a mãe tenta seguir a mesma linha do que era feito em conjunto com Marcelo.
– A Manuela tem os mesmos "nãos" que sempre teve, e faço isso de uma forma tranquila, serena. Foi assim que a gente decidiu criar nossa filha. O que ela passou a gente vai, ao longo da vida, trabalhar.
Após uma redução substancial, o orçamento doméstico força escolhas. Ana Paula teve de interromper o tratamento psicológico a que se submetia para manter as sessões para a filha. À exceção de uma ocasião em que falou com uma tia sobre a violência que sofreu e testemunhou – "Sabe que eu fui no súper e uns titios maus machucaram muito meu pai e aí ele ficou bem quietinho?" –, Manu só se refere ao episódio indiretamente. Ao passar de carro com a mãe pelo supermercado que foi cenário da tragédia familiar, comentou certa vez que elas nunca mais haviam feito compras ali. A cicatriz na bochecha esquerda a inquieta.
– Esse meu dodói aqui não tá ficando bom – aponta a garota, ao que a mãe reage mostrando fotos que comprovam que a marca vem se suavizando.
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Ana Paula evitou o noticiário à época do assassinato de Marcelo e sabe pouco sobre os desdobramentos posteriores do caso (um dos envolvidos foi morto em um confronto com policiais; uma adolescente terá de cumprir medida socioeducativa de três anos de internação; o processo referente aos outros cinco réus tramita na Justiça). Acaba confrontada com detalhes que preferia não conhecer quando curiosos a abordam perguntando de Manuela: "Ai, que horror, né? Ela estava abraçada nele quando tiraram do carro".
– Se foram 25 tiros ou 23, não me importa. Se o carro era preto ou branco, não faz diferença. O que me importa é: meu marido morreu, minha filha está viva – ressalta Ana Paula. – Muitas pessoas buscam uma justiça vingativa. Quero uma justiça preventiva. Quero que prendam essas pessoas para que elas não façam de novo, para que outra mãe não tenha que contar para o filho que o pai dele morreu. Eu não desejo para ninguém a dor que eu senti ao fazer isso.
Manu, agora com cinco anos, é uma menina risonha, fã da Turma da Mônica e da princesa Ariel, e adora cantar. Estava empolgada na manhã do último dia 3 porque a mãe, recém-chegada de viagem, poderia passar mais tempo com ela. Era também a data da apresentação de Dia das Mães na escolinha, para a qual deveria prender o cabelo em um coque com gel. Enquanto posava para as fotos da reportagem, desenhou, no quadro-negro, um sol – tomou cuidado para que as nuvens não o encobrissem –, dois balanços pendurados em uma árvore, ela e a mãe, com um sorriso coberto por batom cor-de-rosa.
– Isso aí, bem feliz – pediu Ana Paula. – E meus braços, onde estão? Tem que ter muitos braços para fazer tudo que eu faço. Tem que ser um polvo! – completou, e as duas riram do divertido absurdo.
Há momentos de tristeza mais profunda, mas já é possível falar de Marcelo com naturalidade. Manu faz referência aos objetos do pai, às comidas de que ele gostava. Por mais que o contato visual seja perturbador, Ana Paula manteve na porta da geladeira as duas fotos do marido com a filha que estavam ali desde antes de tudo acontecer. A casa, uma morada aconchegante de dois pisos em um condomínio na Zona Sul, não é habitada por fantasmas, garante a publicitária. Foi difícil abrir a porta e entrar pela primeira vez após a morte, rever os ambientes, sentir os cheiros habituais, mas o desconforto logo passou – estar ali, sem dúvida, lhe faz bem.
A melhor hora do dia, conta, é a hora de deitar. Mãe e filha têm dormido juntas, na cama do casal. Depois de horas e horas longe, Ana Paula abraça Manu bem forte e agradece. Pensa: "E se ela não estivesse aqui?".
– É um misto de sentimentos: eu perdi uma vida e ganhei outra no mesmo minuto – surpreende-se. – Espero que ela cresça sem revolta, sem ódio, sem mágoa, sem rancor.