Faltava pouco pra terminar a escola que ia garantir vaga pra pelo menos 120 crianças do Jardim Leopoldina, na zona norte de Porto Alegre. Mas, em 2015, a construtora parou obra. Alegou atraso no pagamento, a prefeitura disse que já tinha pago e, enquanto os dois lados não chegavam a um acordo, o prédio ficou abandonado. Dois anos depois, o que sobrou da estrutura foi alvo do vandalismo. Pelo prédio, que hoje é só carcaça, a prefeitura pagou quase meio milhão de reais.
– A creche tinha praticamente 85% da estrutura concluída – disse Paulo da Silva Pereira, presidente da Associação de Moradores do Bairro Jardim Leopoldina.
Em outro ponto da cidade, o que era pra ser uma escola para 60 crianças virou ruína. O prédio da escola de educação infantil do loteamento Irmãos Maristas, no bairro Rubem Berta, ficou abandonado porque o loteamento onde ele começou a ser construído, em 2012, não tinha água, nem luz, muito menos casas. Aí a empreiteira teve que usar caminhão pipa e gerador – e isso encareceu a obra. A construtora pediu mais dinheiro à prefeitura, os aditivos demoraram muito tempo para serem analisados, e a empresa acabou abandonando o trabalho. Do prédio, que já tinha custado mais de 650 mil reais, não sobrou quase nada. E o loteamento ainda segue sem nenhuma casa.
A situação dessas duas – e de outras – creches está descrita em um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Entre maio e outubro de 2015, na gestão do ex-prefeito José Fortunati, técnicos do TCE fizeram uma auditoria em 22 obras de creches e pré-escolas de Porto Alegre, financiadas com recursos do município e também do governo federal, pelo programa Proinfância. O que os auditores encontraram ajuda a explicar porque prédios estão parados, outros nem saíram do papel e milhares de crianças ainda continuam sem escola na Capital: o estudo mostra projetos mal feitos, orçamentos abaixo do necessário, falta de planejamento e de fiscalização.
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Com todas essas irregularidades, a auditoria calculou um prejuízo de 328 mil reais para os cofres do município. Os auditores fizeram 18 recomendações à prefeitura, entre elas, que o valor seja ressarcido. E que a prefeitura faça logo novas licitações, com adequação dos projetos, para concluir as obras inacabadas. Com base no relatório, o Tribunal de Contas abriu um processo para analisar o caso, que aguarda o parecer do Ministério Público de Contas.
Se todas as obras que passaram pela auditoria estivessem prontas, garantiriam vaga pra cerca de 2,6 mil crianças, em creche e pré-escola. Enquanto isso, 13 mil ainda precisam ser matriculadas em Porto Alegre, segundo o próprio Tribunal de Contas.
– Quando se tem urgência na execução da obra, algumas etapas acabam sendo preteridas pra buscar, no menor tempo possível, satisfazer o interesse da população, com resultado contrário – diz a auditora externa do TCE, Andréa Mallmann.
Na época da auditoria, das 22 escolas, só seis estavam prontas. Depois, mais seis foram entregues, mas o tempo gasto na construção desses prédios foi duas vezes maior que o previsto em contrato. Em pelo menos cinco casos, segundo o TCE, as escolas de educação infantil foram erguidas em áreas irregulares.
A auditoria descobriu que os projetos também não passaram pelas etapas de licenciamento dentro da própria prefeitura, contrariando leis municipais e a lei das licitações, e que empresas contratadas não tinham condições técnicas nem financeiras pra tocar as obras. Os auditores apontaram ainda que os orçamentos tinham erros, com valores abaixo do necessário pra execução das obras.
– Boa parte dos aditivos de contratos de obras tem origem em um planejamento deficiente – diz a auditora do TCE.
Nas obras prontas, os auditores concluíram que houve uso de material de baixa qualidade, e muito desperdício, e foi aí que surgiram outros problemas – como o caso dessa escola no bairro Jardim Leopoldina, inaugurada em 2015.
O prédio, que custou mais de um milhão e meio de reais, foi entregue, segundo o relatório, sem o exaustor da cozinha e faltando partes da mobília. Mesmo assim, teria recebido o aval da fiscalização. Ao todo, os auditores concluíram que a prefeitura pagou 86 mil reais por itens que não foram executados, mas estavam previstos no projeto. Logo que a escola ficou pronta, a água invadia o prédio quando chovia por causa do desnível no terreno. Aí, os pais se juntaram pra construir uma mureta que agora evita os alagamentos. Mas a água continua entrando, só que pelo telhado. Há infiltrações nas salas e a umidade já danificou parte da rede elétrica do prédio, onde 180 crianças passam o dia. A coordenadora pedagógica diz que seria necessário impermeabilizar o telhado, mas isso custaria nove mil reais.
– Pra resolver isso, a gente precisaria uma manta, que é um orçamento muito alto pra comunidade e a gente vêm avisando a prefeitura que o problema continua. A gente atá brinca que ela é um castelo que parece de areia, ela vai caindo e a gente vai tentando, junto com a comunidade, arrumar – afirma Janaína Vasnieski da Silva.
A Leopoldina 1 ganhou a liberação do arquiteto Fernando Flores da Cunha Garcia, que até a última sexta-feira ainda tinha um cargo de confiança na Secretaria Municipal de Educação (Smed). A auditoria apontou que a situação de Fernando, na época em que a obra foi liberada, configurava desvio de função, porque ele exerceu atividades de fiscalização, atribuição que cabe a servidores de carreira.
Além disso, Fernando era sócio de uma empreiteira que prestava serviços para o setor público, o que é proibido pelo Estatuto do Servidor Público. Em dezembro de 2015, ele foi nomeado para para uma nova função na Smed, também como cargo de confiança, cargo que seguiu ocupando no atual governo. Na última sexta-feira, ele foi exonerado pelo secretário da Educação, Adriano Naves de Brito.
O que diz a ex-secretária de Educação, Cleci Jurach
A ex-secretária de Educação do governo Fortunati questiona os apontamentos da auditoria e diz que o andamento dos projetos seguiu as normas exigidas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que financiou as obras. Cleci explica ainda que os processos para regularização fundiária dos lotes foram feitos e estão em andamento na prefeitura. Segundo ela, pelo convênio assinado com o FNDE, o prazo pra isso é de quatro anos.
– Isso nós respondemos e eu acredito que a auditora não tenha ou talvez da nossa parte não tenha ficado claro. Existe a lei complementar 544 do município que estabelece a construção de escolas infantis nesses terrenos que não estão legalizados. Essa lei permite que haja a construção e que depois haja o reordenamento porque há a garantia de que aquela população não sairá daquele espaço. A lei nos ampara.
No caso das obras paralisadas, culpa a burocracia e as próprias empresas que, segundo ela, eram muito pequenas e não tinham condições financeiras de tocar os projetos. Mesmo assim, a ex-secretária garante que todas as empresas que abandonaram as obras foram multadas pela prefeitura e tiveram os contratos suspensos. Sobre a Leopoldina 1, afirma que não houve pagamentos indevidos e que a empreiteira teria feito as correções necessárias na obra. Ela defende a atuação do fiscal, apontado na auditoria.
– A legislação não diz que a fiscalização tenha que ser feita por funcionário de carreira concursado, ela pode ser feita por funcionário contratado. Tanto é que a maioria das fiscalizações externas do FNDE são terceirizadas. Pôr em dúvida o trabalho desse funcionário, que detém um conhecimento expressivo na área de arquitetura educacional, eu defendo o funcionário. Agora, quanto a questão de ele ter incorrido em manter uma empresa privada e exercer um cargo público, isso cabe o processo pertinente. Mas que fique bem claro que, conosco, a empresa dele, se é que existe, não prestou serviço nenhum – disse a ex-secretária.
O que diz a atual gestão da Smed
A atual gestão montou um grupo de trabalho, formado por integrantes de vários setores da prefeitura, que analisa os projetos do Proinfância caso a caso. A prioridade é concluir quatro obras, que já estavam em andamento no governo anterior.
– Essa análise é complexa, envolve questões financeiras porque a gente precisa de recursos pra concluir as obras, envolve questões legais porque algumas delas terão que ser licitadas novamente, envolve questões técnicas de engenharia porque tem que se fazer uma análise do que já foi construído, do que não foi construído, uma análise fundiária dos terrenos. A prioridade é concluir as obras em andamento. Também fazer uma análise legal dessas rescisões de contrato e encaminhar possíveis multas e sanções às empresas que não cumpriram anteriormente com o que foi pactuado nos contratos – diz o gestor jurídico Paulo Renato Ardenghi.
O que diz o arquiteto Fernando Flores Garcia
O arquiteto Fernando Flores Garcia diz que, na época das obras, ele assessorava a ex-secretária e que se tornou responsável pela fiscalização e por projetos porque muitos fiscais saíram da secretaria – o que o levou a acumular funções. Sobre as obras liberadas, não considera que houve prejuízo porque os itens que faltavam poderiam ser instalados depois da creche aberta. Também disse que não atuava em cargo de gestão em empresa particular e, por isso, não vê empecilhos para trabalhar no serviço público.