Se alguém ainda acha que Carnaval é alienação, vai ter de rever seus conceitos depois de 2017. Neste ano, a festa promete tomar as ruas do Brasil misturando política e ideologia às plumas e paetês.
O fenômeno está aparecendo em várias frentes e desencadeando polêmicas. A mais notável diz respeito à decisão de vários blocos de rua – no Rio, em São Paulo e em outras capitais – de vetar marchinhas com conteúdo considerado preconceituoso. Os carnavalescos vão deixar de pular ao som de clássicos como Cabeleira do Zezé, Maria Sapatão, O Teu Cabelo Não Nega e Ai, que Saudades da Amélia, tidas como homofóbicas, racistas e machistas.
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Outra novidade é a proliferação de blocos formados por partidários de determinadas linhas ideológicas ou movimentos sociais. Vão sair à rua agremiações que reúnem feministas, homossexuais, defensores do discurso "Fora, Temer" e adeptos de diferentes partidos. No fim de semana passado, por exemplo, o Rio de Janeiro foi tomado por símbolos comunistas, levados à rua pelos esquerdistas do Bloco Soviético, que celebra os cem anos de Revolução Russa. Para completar esse caldeirão, a Mulata Globeleza apareceu pela primeira vez vestida (uma reivindicação de feministas e integrantes do movimento negro), e o uso de turbantes e outros adereços de origem africana por mulheres brancas ficou sob escrutínio.
Pesquisadores e pessoas engajadas no Carnaval atribuem a ideologização e a força do politicamente correto ao surgimento de uma nova geração de foliões, ao clima nacional de polarização e ao fortalecimento de grupos tradicionalmente marginalizados, como negros, mulheres e homossexuais. O jornalista e sociólogo Bruno Filippo, autor do livro Por Quem as Rosas Falam e Outros Ensaios Sobre Samba e Carnaval, afirma que questões como o preconceito racial e a ideologia estão invadindo a festa porque o Carnaval sempre foi um reflexo da sociedade brasileira.
– Hoje, a sociedade brasileira discute mais temas como a homofobia, o racismo, o preconceito. O que aconteceu é que, neste ano, o fenômeno estourou. É generalizado. Os blocos de rua são formados por uma geração de classe média e escolaridade alta, para a qual certas coisas que eram normais no passado já não são aceitáveis. Daí, o veto a algumas marchinhas – analisa Filippo. – Já a proliferação de blocos políticos tem a ver com a polarização desses últimos anos, cujo ápice foi o impeachment da (ex-presidente) Dilma (Rousseff). Essa ideologização, usar o carnaval como veículo para a divulgação de ideais, de slogans políticos, isso é um fenômeno novo. A ideia de que o Carnaval é uma válvula de escape para o que acontece durante o ano está ultrapassada. Não dá conta da realidade atual.
Folia de rua sempre foi politizada, diz autor
O compositor Edu Krieger, bicampeão do concurso nacional de marchinhas da Fundição Progresso, enxerga no momento atual a convergência de dois fenômenos. Por um lado, o engajamento político ocorrido a partir da gigantescas manifestações de 2013. De outro, o ressurgimento do Carnaval de rua, que ganhou força extraordinária em todo o país nos últimos anos, com o aparecimento de milhares de blocos país afora.
– Enquanto o Carnaval das escolas de samba é comprometido com patrocinadores e não pode se expressar politicamente de maneira tão clara, o Carnaval de rua sempre foi politizado. Nos anos 1930 e 1940, as marchinhas tinham uma irreverência política, uma pitada de crítica, que aos poucos foi se perdendo – avalia Krieger. – A partir do momento em que as ruas voltam a ser palco de manifestações políticas e também de Carnaval, com o ressurgimento dos blocos, era natural que isso fosse se juntar em algum momento. Existe uma necessidade maior de as pessoas usarem o Carnaval e a visibilidade que ele traz para se posicionarem política e ideologicamente. O que eu espero é que isso não desencadeie reações de ódio.
O veto a marchinhas clássicas, que tem gerado um debate acalorado, é encarado por Krieger como uma prova de que a sociedade brasileira está amadurecendo.
– Décadas atrás, era considerada aceitável uma marchinha como O TeuCabelo Não Nega, que diz que, já que a cor não pega, quero o amor de uma mulata. Hoje em dia, isso gera repulsa. Quem condena essa patrulha às marchinhas antigas esquece que foi esse pensamento crítico que permitiu que os abolicionistas tivessem voz no século 19 – defende.
O escritor Alberto Mussa, que pesquisa as escolas de samba, reconhece que há uma infinidade de marchinhas racistas, machistas, antissemitas e preconceituosas em relação aos índios. Apesar disso, se opõe à censura.
– A pessoa pode restringir no seu ambiente, se ficar ofendida. Mas, quando você censura, você não discute. A estratégia que acho mais inteligente para se opor ao racismo, ao machismo, ao antissemitismo é ativa, subvertendo a letra ou levando o texto ao ridículo.
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Mulata Globeleza vestida
Desde 1991, uma mulher negra nua, apenas com tinta sobre o corpo, protagonizava as vinhetas de Carnaval da Rede Globo. Neste ano, pela primeira vez, incorporada por Erika Moura, a Mulata Globeleza apareceu vestida. A mudança ocorreu depois de grupos feministas lançarem ataques à Globo. Entendiam que a personagem objetificava, hipersexualizava e reforçava estereótipos sobre a mulher negra.
Marchinhas vetadas
Blocos de Carnaval e rodas de samba do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras capitais brasileiras resolveram riscar do seu repertório uma série de marchinhas populares, por considerá-las machistas, racistas ou preconceituosas. O Bloco do Boitatá, um dos mais famosos do Rio, e a Charanga do França, de São Paulo, por exemplo, eliminaram o clássico O Teu Cabelo Não Nega (Como a cor não pega, mulata/Mulata eu quero o teu amor). O Bloco das Mulheres Rodadas, carioca, vetou ainda Maria Sapatão e Índio quer Apito. Também ocorreu rejeição a composições como Cabeleira do Zezé e Ai, que Saudades da Amélia, a primeira considerada homofóbica, a outra por supostamente reforçar o papel submisso da mulher.
Blocos ideológicos
Blocos de rua identificados com grupos políticos, movimentos sociais e linhas ideológicas viraram uma febre em 2017. Em Porto Alegre, por exemplo, há o Não Mexe Comigo que Eu Não Ando Só (feminista) e o Bloco da Diversidade (que defende os direitos LGBT e se opõe ao governo de Michel Temer). No Rio, fez sucesso o Bloco Soviético, de esquerdistas, que celebra os cem anos da Revolução Russa de 1917. Algumas pérolas das letras satíricas do bloco: "Se você fosse sincera / ô ô ô ô, Aurora / Eu te mandava pra Sibéria / ô ô ô ô, Aurora", "O teu discurso não nega, machista / perder privilégio é uma dor / só quero andar tranquila na pista / a opressão não é amor" e "Você pensa que Orloff é água / Orloff não é água, não / Orloff vem de Leningrado / e água vem do Vostokão".
Apropriação cultural
No início de fevereiro, uma estudante de Curitiba afirmou no Facebook ter sido criticada por negros por usar um turbante, um adereço de origem africana. O episódio desencadeou uma grande discussão sobre a chamada apropriação cultural – quando um grupo utiliza símbolos de outro grupo, supostamente esvaziando o seu significado. O episódio gerou movimentos que reivindicam evitar a prática neste Carnaval e grupos garantindo que vai ter branca de turbante, sim.