Até 1967, em termos de veículos, o Brasil andava na pré-história. Os que aqui circulavam eram, basicamente, os mesmos que trafegavam pelos Estados Unidos 20 anos antes. Sem um grande mercado comprador, o país estava longe de ser alvo do setor. Até que, com o aumento do poder aquisitivo dos brasileiros, a Ford resolveu trazer para cá o que tinha de melhor em termos de luxo. Assim se abriam as portas para a chegada do Galaxie 500, um marco na indústria automotiva nacional. O grandalhão que chegou era, basicamente, o mesmo bacana lançado nos EUA um ano antes.
O começo
Há outro motivo para a expansão da Ford chegar ao Brasil. No início daquela década, a montadora investiu mais de 120 milhões de dólares para a criação do seu sedã grande (em termos de comparação, mais do que o triplo investido para se chegar ao Mustang). Precisava, então, vender mais e mais unidades.
Presente no Brasil desde 1919 com a montagem de caminhões e utilitários, a Ford abafava no país, o que facilitava a expansão do Galaxie. A primeira versão oferecia apenas motor V8 272 (nos EUA, havia outras duas, mais potentes), com 164 cavalos e câmbio de três marchas – em 1970, mecânicos testaram algumas unidades e garantiram que o número chegava a 170cv, porém, com a tecnologia da época ainda não era supimpa, apenas uma parte disso chegava às rodas da máquina.
Para os tremendões da época, ter um Galaxie era realizar um sonho. Nada tão confortável e suntoso havia sido visto no país até então. A carroceria tinha incríveis 5,40m (comprimento) por 1,99m (largura), frisos de alumínio contornando as caixas de rodas e na grade dianteira. Mesmo com as pavimentações de lascar da época, ele era macio. O porta-malas era capaz de acomodar pessoas deitadas.
Para nickson, um típico caso de amor à primeira vista
Aos 14 anos, Nickson Pereira viu um Galaxie passando pelas ruas. Foi amor à primeira vista. Desde então, o menino de Canoas não mais tirou da cabeça o sonho de ter um veículo, cuja fabricação parou justamente no ano em que ele nasceu, 1983. Até que, três anos atrás, seu desejo se concretizou. Comprou um modelo 1968 e passou a reformá-lo. Hoje, seu Galaxie é brasa.
– Não sei, acho que está no sangue. Foi de olhar e admirar, não é coisa de família – conta o empresário.
Nickson tem na cabeça o histórico do carro. O primeiro dono foi um médico, da Capital, que o vendeu a um militar, com quem o veículo ficou até 1984. O gigante passou então para as mãos de um funcionário da Ford.
– Um meio-irmão da minha esposa era apaixonado pelo carro, e um dia conseguiu comprá-lo. Ele usava todos os dias. Depois, passou a rodar só uma vez por ano. Ele 1992, ele vendeu para um irmão, mas achou que o carro não estava sendo bem cuidado e o comprou de volta em 1994. Até 2013, o veículo ficou quase o tempo todo na garagem, só rodou 250km – relata Nickson.
Nessa época, Nickson gamou no carro e convenceu o dono a vendê-lo – antes, reformou sua casa para aumentar a garagem. E passou a fundir a cuca para as reformas que tinha em mente. Obter a placa preta (certificado de originalidade), sonho de muitos, não faz a cabeça de Nickson.
– Respeito quem gosta, mas não concordo. Coloquei freios a disco, ar-condicionado (só em 1969 o modelo ganhou o equipamento) e outras soluções mais modernas que só melhoram o Galaxie. Muitos que têm a placa preta mal podem sair com o veículo, e eu rodo tranquilamente – conta o atual proprietário.
Empreendedor do ramo de locação de contâiners, Nickson faz praticamente toda a manutenção do Galaxie - ele tem em casa um manual técnico da Ford. E se especializou tanto que passou a produzir algumas peças. Uma delas é a máquina da ventarola, algo bastante procurado por colecionadores e uma raridade no mercado. Ele fabrica as peças e já vendeu oito unidades (R$ 300 cada) para colecionadores do todo o Brasil.
Mais do que rodar, Nickson consegue alguma grana com o veículo, pois o aluga para levar noivas à igreja e para fotos. Assim, o próprio Galaxie vai pagando parte dos mais de R$ 50 mil investidos no veículo. Se o dono pensa em vender?
– Nem se me pagar o dobro do que investi. Deu muito trabalho, foi feito com muito carinho. A ideia é manter o carro, talvez para sempre.
MITO VIVEU POR 16 ANOS
Ajudado pela direção hidráulica, a primeira edição do Galaxie era fácil de dirigir, sobretudo em uma época com vias mais largas e menos veículos circulando. Nos anos 1970, a Ford fez uma versão "pé-de-boi", com direção convencional. Das quase 80 mil unidades vendidas no país em 16 anos, menos de 10% eram dessa categoria.
Com o medidor de nível do combustível à esquerda, velocímetro ao centro e abaixo dele o relógio de horas, o quadro principal do painel era algo de muito moderno para a indústria daquele tempo. As luzes-espia também ajudavam a tornar o Galaxie bastante elegante.
Abaixo do painel, ao lado esquerdo, uma lâmpada avisava o acionamento do freio de estacionamento (feito com o pé, como em algumas caminhonetes atuais). Para comandar a ventilação interna e o acendimento das luzes, botões cromados, parecidos com o do rádio (na época, só AM).
No porta-luvas, um tipo de clipe permite a fixação de documentos.Um detalhe interessante e raro de se ver nos modelos que remanesceram é a ausência do retrovisor externo, item não obrigatório na época, mas que foi adotado pela grande maioria dos motoristas devido as enormes proporções do automóvel.
Em fevereiro de 1983 o último Ford Galaxie Landau, nome ganho ainda nos anos 1970, deixou a linha de montagem. Foram 125 veículos produzidos na última temporada. A Ford resolveu substituir o Galaxie pelo Del Rey, também luxuoso, porém com tamanho e consumo bem menores.
INTERIOR SEM IGUAL
A tapeçaria é um dos pontos altos do Galaxie, até porque, no Brasil, o interior dos veículos era absolutamente rústico. Apenas nos anos 1970, com a chegada de rivais como o Dodge Dart e o GM Opala, é que o grande sedã da Ford ganhou concorrentes à altura nesse quesito.
Os bancos inteiriços eram revestidos em vinil ou de tecido, que tinha faixas decoradas em relevo, algo na época chamado de costura eletrônica. Nas portas, filetes cromados em meio à forração arrancavam suspiros. O cliente tinha a opção de ter o interior preto, bege, azul ou vermelho. O painel tinha vinil na parte superior.
Com a carroceria gigante, era fácil encontrar local para adereços. Os cromados dos para-choques conferiam elegância ao modelo. Na frente, a enorme grade continha dois pares de fárois verticais (no final dos anos 1970, foram horizontalizados). Na grade em alumínio polido, com abertura horizontal central (de ponta a ponta), ficavam os piscas. No centro do capô, na dianteira, havia a inscrição Ford.
Na parte superior do para-lama traseiro direito, ficava a antena apoiada com um acabamento retangular cromado. No ano seguinte, essa antena mudou de lado. No para-lama traseiro esquerdo, uma tampa retangular abrigava o bocal do tanque de combustível, com capacidade total de 76 litros - no modelo com motores maiores (e mais beberrões), 107 litros. Mesmo assim, a autonomia não é o forte do veículo. Com a gasolina da época, o motor V8 fazia cerca de 4km/l na cidade.
– Com as modificações que fiz, consigo média de 7,5km/l na estrada a 100km/h. Mas, se enfiar o pé no acelerador, na cidade ele faz uns 2km/l – relata Nickson.
Boa parte da harmonia e beleza da traseira são proporcionadas pelas lanternas vermelhas de desenho quadrado, com um pequeno quadrado branco ao centro. Os contornos das lanternas são destacados por um friso cromado.
Ficha Técnica
Motor: 4.5 litros, 8 cilindros, dianteiro, com carburador de duplo corpo, gasolina (a partir de 1981, foi fabricada versão a álcool). Potência _ 164cv a 4.400rpm e torque de 33,4kgfm a 2.400rpm (motor 272). O modelo 1977 tinha o V8 302, de 5.0l, com 199cv a 4.600rpm e torque de 39,8 kgfm a 2.400 rpm. Nos dois casos, alguns especialistas garantem que a potência era maior, mas foi divulgada com números menores para que o automóvel pagasse menos impostos. Os valores seiam 170cv e 217cv.
Velocidade máxima: equipado com o bloco 272, chegava a 140km/h. O com propulsor 302, 159km/h
Dimensões (mm): comprimento, 5.400; largura, 1.998; altura, 1.450; entre-eixos, 3.020Peso: 1.780kg em ordem de marcha
Suspensões: dianteira independente, e na traseira, eixo-rígido
Tração: traseira
Freios: a tambor nas quatro rodas (a partir de 1977, o disco passou a equipar as quatro rodas)
Câmbio: manual de 3 velocidades (em 1968, chegou ao Brasil a versão com câmbio automático de três marchas)
Tanque: 76 litros (a partir de 1977, 107 litros)
GLOSSÁRIO
Bacana: Pessoa ou coisa legal. Nos anos 70, transformou-se em termo para designar ricos.
Abafava: É mais ou menos o "causar" ou "bombar" dos dias atuais. Outro termo que se refere a pessoas e coisas.
Supimpa: Coisa boa, geralmente usado para algo que foi melhorado e surpreendeu: "ficou supimpa".
Máquina: É como as pessoas chamavam os melhores carros. No interior do RS, alguns diziam "auto", mas não tinha a conotação de ser bom veículo
Tremendões: Os homens que mais se destacavam. Tremendão é o apelido do cantor Erasmo Carlos, ícone da época.
Brasa: excelente
Gamou: Se apaixonou
Fundir a cuca: Pensar muito sobre alguma coisa
Grana: Muito usada até hoje, a palavra foi criada nessa época e significa dinheiro