Vinhos praticamente desconhecidos do público, feitos na cidade de Canela por um praticamente desconhecido produtor, poderiam estar entre os melhores do mundo? Sim. É o que ocorre já há alguns anos com os vinhos criados por Marco Danielle em seu Atelier Tormentas.
Ele começou a fazer vinhos conceituais em 2002. Do primeiro, o Tormentas Premium Cabernet Sauvignon 2004, saíram apenas 141 garrafas. Estudioso e focado, passou a endereçar garrafas às pessoas certas – como o célebre crítico inglês Steven Spurrier, editor da influente revista inglesa Decanter, que as degustou e aprovou. Inicialmente na base do boca a boca, os vinhos foram ganhando admiradores e multiplicando atenções no exclusivo universo da alta enofilia nacional e, logo, internacional. Uma das pontes mais sólidas para isso foi o Fulvia Pinot Noir 2009, com a uva clássica e temperamental da Borgonha. Naquele ano, Danielle participou como palestrante de um evento comemorativo à 200ª edição do caderno Paladar, do jornal O Estado de S.Paulo. Levou uma prova da barrica (antes do engarrafamento) do Fulvia, surpreendendo os especialistas presentes, entre eles o publicitário Didú Russo, autor de dois livros sobre vinhos, colunista da revista Prazeres da Mesa e fundador (em 1999) da Confraria dos Sommeliers, que congrega experimentados profissionais paulistas.
LEIA MAIS
Protagonismo brasileiro no vinho
Nenhum de Nós fecha acordo para lançamento de vinho da banda
Vinícola lança rótulos com terroir do pampa
Dois anos depois, já tendo provado o pinot noir gaúcho da safra 2011, Didú realizou uma degustação às cegas de vinhos da Borgonha. Nesse tipo de reunião, os confrades são levados a identificar e atribuir notas aos vinhos, com rótulos conhecidos apenas pelo anfitrião; e este às vezes insere um "intruso" para ver se alguém acerta sua origem. Entre sete borgonhas tradicionais, Didú incluiu o Fulvia, que, para espanto de todos, ficou em primeiro lugar. Pouco depois, outro reconhecido enófilo paulista, colecionador de vinhos raros, o empresário Faiçal Murad, promoveu degustações às cegas com resultados ainda mais surpreendentes: numa delas, o Fulvia 2011 chegou a superar um Mouton Rothschild e um
Essas surpresas trouxeram à memória o lendário "Julgamento de Paris", que em 1976 abalou o até então exclusivista mundo do vinho francês. Radicado em Paris, onde criara três anos antes a Académie du Vin e uma escola de vinhos, Steven Spurrier ficara intrigado com a qualidade de vinhos da Califórnia que alguns alunos americanos lhe apresentaram. Durante os festejos do Bicentenário da Independência dos EUA em Paris, coordenou uma degustação às cegas de vinhos franceses e americanos. O júri tinha nove franceses altamente credenciados, e o resultado foi um escândalo: desconhecidos rótulos do Novo Mundo chegaram à frente de famosos vinhos da França.
Danielle considera um marco simbólico na história do Atelier Tormentas o dia 18 de agosto de 2011, quando quatro de seus vinhos foram provados pelo francês Philippe Pacalet, em São Paulo, na World Wine (uma das três maiores importadoras brasileiras de vinhos premium). Pacalet é um dos nomes de grande prestígio da nova geração de vinhateiros naturais da França – "vinhateiro" é como se definem os produtores de vinhos de autor, artesanais, para diferenciar-se dos grandes produtores industriais. Ele deixou um bilhete para Danielle: "Retornaremos a Beaune com algumas garrafas que teremos prazer em compartilhar com connaisseurs". Beaune é a capital do vinho na Borgonha, uma das duas mais célebres regiões vinícolas da França – a outra é Bordeaux.
Depois desse novo cartaz por parte de uma autoridade mundial, outro marco foi, enfim, o reconhecimento pela conservadora, exigente e influente Associação Brasileira dos Sommeliers (ABS), com sede em São Paulo. Como ocorre uma vez por ano, em novembro passado um grupo de diretores e associados da ABS chegou à Serra Gaúcha para sua incursão pelas vinícolas. Costumam ser recebidos com todas as honras, naturalmente. Mas Danielle sempre foi tido como um enfant terrible do vinho brasileiro, optando por estar à margem de instituições e convenções conservadoras para "poder criar em liberdade".
– A cultura do vinho é ligada ao poder e fortemente nobiliárquica – afirma. – A ABS me cheirava a mofo. Como instituição educativa e formadora de profissionais do vinho, me parecia absurdo desprezarem a revolução promovida pelo vinho artesanal do próprio país, valorizando sempre as mesmas chancelas já desgastadas da Europa, ou a indústria do Novo Mundo. Vinho sempre me pareceu bem mais do que isso, trata-se da expressão cultural de uma região específica e inigualável. Durante muitos anos eles pareceram desprezar a repercussão em torno do trabalho do Atelier, mas a insistência de críticos influentes foi intensa, e terminaram por reconhecer a qualidade dos nossos resultados.
Então, pela primeira vez, Marco Danielle foi convidado pela ABS a apresentar seus vinhos. Seu primeiro ímpeto foi recusar o convite. Mas graças à intervenção de um amigo comum, topou a parada. O encontro ocorreu no hotel SPA do Vinho, em Bento Gonçalves, tendo à frente dos visitantes o homem de quem ele sempre ouvira falar como "o todo-poderoso da ABS", Mario Telles.
– Durante anos, clientes e admiradores falaram de meu trabalho e levaram Mario Telles a provar meus vinhos, sem que ele jamais me desse qualquer retorno. Passei a vê-lo como uma espécie de Torquemada da Inquisição. Qual não foi minha surpresa ao conhecê-lo pessoalmente. Deparei com um gentleman, um homem sábio e sensível que fez um dos mais comoventes discursos que já presenciei após uma de minhas apresentações. Um homem que soube rever preconceitos e reconhecer que a verdade de um vinho está na taça, mais do que na origem ou nos brasões europeus de família.
Antes de tudo isso, o primeiro marco real para a projeção da vinícola foi a entrada em cena de Ed Motta. Viajante inveterado e enófilo de vasto currículo, o músico carioca apaixonou-se pelos vinhos de Danielle e tem sido seu principal divulgador espontâneo no Brasil. Destacou-os inicialmente em 2007, em um texto publicado na coluna que mantinha no site da revista Veja, depois em entrevistas ao jornal O Globo e ao canal Globo News, em dicas para a revista de bordo da Latam, e com frequência os tem comentado em sua página no Facebook.
O ingresso de Ed nos aromas e sabores do Atelier Tormentas deu-se em 2006, por indicação de dois amigos gaúchos, Rodrigo Machado, gourmet, sommelier e sócio da casa de shows Opinião, de Porto Alegre, e Augusto Carvalhal da Silva, arquiteto que largou a profissão para abrir uma padaria artesanal em Pelotas e que também se dedica à cultura do vinho. Em veja.com, Ed escreveu: "A maioria dos consumidores tem condescendência com muita bobagem do Chile e da Argentina, e pouca paciência em procurar vinhos locais. O diretor Jonathan Nossiter, do documentário Mondovino, havia me alertado para a qualidade dos vinhos brasileiros num almoço da chef Roberta Sudbrack. Outros incentivadores foram meus amigos (Rodrigo e Augusto) que desenvolvem o site Notas de Degustação, que me mostraram o vinho Minimus Anima, da vinícola Tormentas. Minha curiosidade pelos vinhos brasileiros, então, se multiplicou depois de conhecer um produto de tanta qualidade. Degustamos dois vinhos. O primeiro foi o Tormentas Premium Grande Caldo Cabernet Sauvignon 2004, de apenas 141 garrafas (wow!), e que foi elogiado pelo crítico Steven Spurrier – de uma das melhores revistas de vinhos, a Decanter inglesa (os ingleses sabem das coisas e sempre antes da maioria). Mas meu favorito foi o Minimus Anima 2005, um blend das uvas cabernet sauvignon e alicante bouschet, o tinto brasileiro de maior personalidade que já degustei. Tem mais expressão do que muitos vinhos do Novo Mundo, entupidos de madeira e cheios de 'truques milagrosos' para melhoria da fruta".
Continuemos um pouco mais com Ed Motta, pois o que ele diz sintetiza muito das impressões que hoje se avolumam sobre o trabalho de Marco Danielle. O repórter de O Globo pergunta: "Como anda a degustação?". Resposta: "Não sou nacionalista, sou universalista, e francófilo, mas defendo que o vinho mais francês do mundo hoje, além do francês, é o brasileiro. Em termos gustativos e de qualidade. Os chilenos e argentinos estão muito americanos, tecnicamente perfeitos mas cheios de química. No Brasil, os grandes imitam isso, mas os pequenos estão fazendo joias. Tem um branco nacional tão bom que, quando levo minha bolsa de 12 garrafas pro Exterior, na volta só trago tinto. É o Âmbar, de um produtor pequeno da cidade de Canela, Marco Danielle. Vinho de autor".
COMO UM FOTÓGRAFO PUBLICITÁRIO
TRANSFORMOU-SE EM VINHATEIRO
Mas quem é Marco Danielle, que aos poucos ganha status de referência mundial na arte de fazer vinhos de autor? Que é respeitado por celebridades da vinicultura europeia, como Steve Spurrier, Pierre Overnay, o maior expoente vivo da história do vinho natural, e o barão Philippe de Rothschild, membro de uma família detentora de alguns dos vinhos mais famosos de todos os tempos, como o Château Lafite? Que tem o único rótulo brasileiro na carta do restaurante Pearl & Ash, de Nova York, considerado pelo jornal The New York Times "o mais excitante local para se tomar vinho na cidade"? Que aparece quatro vezes na carta de um dos restaurantes estrelados de Hong Kong, o Djapa? Que integra o seleto portfólio do principal importador holandês de vinhos, Willem Blankenstein?
Marco Danielle é o alter ego vinhateiro de Maurício Heller Dani. Maurício nasceu em Caxias do Sul, em 1966, e ainda pequeno se transferiu com a família para Brasília, onde fez os estudos fundamentais, completados no retorno à Serra. Em 1987, sem muitas certezas, começou a fazer Engenharia na UFRGS, transferindo-se no ano seguinte para o curso de Publicidade na Fabico, interrompido logo no início por uma viagem de três meses pela Europa. Em 1992, outra interrupção e novas aventuras europeias. E em 1993, enfim, a conclusão do curso, durante o qual se manteve fazendo fotos para publicidade. Mas Paris já o fisgara, e Maurício voltou decidido a ficar por um tempo indefinido, desta vez acompanhado da noiva, Maristela Susin, também caxiense, com quem se casaria na capital francesa e teria a filha Fulvia, em 2000.
– Fui realizar o sonho de ser fotógrafo internacional. Queimamos uma herança e montamos em Paris um estúdio de fotografia artística. Trabalhei muito, realizei o sonho, minhas fotos da cidade viraram cartões postais e pôsteres, aparecendo em todos os quiosques ao lado das fotos de Cartier-Bresson e Robert Doisneau. Algumas estão à venda até hoje, por uma editora local – recorda Danielle. – Mas também sempre me interessei pelo mundo do vinho. O inverno francês me lembrava o inverno de Caxias, e eu me perguntava por que não se produzia no Rio Grande do Sul vinhos de qualidade semelhante aos franceses. Bem, depois de três anos, resolvemos retornar ao Brasil. Acostumados a uma vida tranquila e segura em Paris, desejando que nossa filha crescesse em um local pacífico, optamos por não voltar a Caxias e elegemos Canela, cidade cercada de natureza, um paraíso para as crianças.
Em Canela, Maurício manteve o padrão de vida fazendo fotos e peças publicitárias para empresas e publicações. Tinha uma boa casa, boa situação financeira, mas no íntimo se sentia cada vez mais incomodado com o trabalho que se repetia sem demandar maior criatividade. Além disso, dedicara 20 anos à fotografia e de repente veio a era digital, que "em um ou dois anos apagou 160 anos de fotografia clássica e, num simples apertar de botão, promoveu a maior vulgarização da imagem jamais vista, uma poluição visual sem precedentes".
LEIA MAIS
O mundo do vinho na Serra
RS ganha novo roteiro turístico, focado em produtos orgânicos
Campanha tem se fortalecido como destino de enoturismo no Estado
Como o hobby de fazer vinho para consumo próprio e dos amigos ia virando uma paixão "irreversível", ocupando cada vez mais seu tempo, em um belo dia de 2001 Maurício decidiu: abandonaria a carreira de publicitário. Na época, os "vinhos de garagem" eram uma febre na França, e a vinicultura brasileira de qualidade ainda engatinhava. Maurício voltou à França com o objetivo de visitar vinícolas e comprar livros que o ensinassem a elaborar vinhos nos moldes tradicionais franceses. É então que o autodidata Maurício Heller Dani se transforma no vinhateiro Marco Danielle:
– A mudança de nome foi uma tentativa de reinventar-me, ou de renascer, como fez um personagem do (Pedro) Almodóvar (cineasta espanhol).
Hoje, ele se define como "fotógrafo por hobby, vinhateiro nas horas vagas e filósofo a maior parte do tempo". Em 2007, disse ao extinto site Notas de Degustação: "O vinho é multidimensional, daí o segredo do seu fascínio. Tal como as pessoas, pode ser falso, vulgar ou sem importância, mas se possuir caráter, alma e honestidade, pode constituir-se numa expressão do estético à altura da arte, uma arte capaz de alimentar, ao mesmo tempo, o corpo, o espírito e a imaginação. A expectativa e o mistério contidos na garrafa de um bom vinho são inigualáveis. Cada garrafa parece prender em seu interior um gênio à espera do seu amo".
A razão do nome Atelier Tormentas, surgido em 2004, é motivo de constantes indagações. Na entrevista mencionada acima, justificou: "A sonoridade é forte e latina. O nome evoca a via-crúcis de desafios e intempéries que enfrenta o vinhateiro do vinhedo ao copo e, mais que tudo, marca um período de decisões particularmente difíceis da minha vida pessoal". Em paralelo à decisão de "largar tudo" em prol dos vinhos, ele vendeu seu BMW para comprar os primeiros tanques de inox e separou-se de Maristela. Pouco mais tarde, veio o segundo casamento, com Rejane Dapper, que duraria sete anos e do qual nasceria em 2010 Pier Paolo – referência ao cineasta Pier Paolo Pasolini.
Foram sete anos de muito trabalho e obstinação até chegar ao Fulvia, que de fato colocou o Atelier Tormentas no cenário internacional. Danielle só não plantou as videiras nem colheu as uvas – mas selecionou os produtores, em vinhedos do sul do Estado (Encruzilhada, Livramento, Bagé, Hulha Negra). Nos primeiros tempos, quando a produção não passava de mil garrafas por safra, encarregava-se do engarrafamento (manual), da rotulagem, da comercialização, da promoção dos vinhos na internet e em degustações. Tinha, e ainda tem, dificuldade em dividir as tarefas com gente de fora. Depois, quando as tiragens foram subindo até chegar à média anual de 5 mil garrafas (só para efeito de comparação: a Miolo produz 10 milhões por ano), pelo menos para o engarrafamento passou a contratar mão de obra. Mas sabe que terá de admitir funcionários.
– O que ocorre é um problema estrutural que vem das minhas raízes de autor – resume Danielle, responsável pelas fotos, pelo design e pelo texto dos rótulos. – Minha formação em comunicação é autoral e individualista. Não consigo imaginar meus rótulos projetados por uma agência. Não consigo abandonar essa sombra de minha formação acadêmica. O perfeccionismo emperra um pouco o processo, pois é pesado fazer tudo ao mesmo tempo tendo por meta fazer sempre melhor. Sou um razoável criador de coisas estéticas, mas um péssimo administrador de negócios. Tudo isso era bacana quando eu vendia uma caixa por semana, hoje essa configuração intimista tornou-se pouco funcional. Preciso aprender a delegar.
Na verdade, Danielle já não está sozinho. Em junho de 2015, em evento da Associação Brasileira de Winemakers, foi homenageado com o título de sócio honorário. A solenidade ocorreu na sede da Miolo, em Bento Gonçalves, e naquele dia ele conheceu Vanessa Medin, então funcionária dessa que é uma das maiores vinícolas brasileiras. Logo engatariam um namoro sério. Em outubro de 2015, tornaram-se parceiros na vida e no Atelier Tormentas.
– Vanessa veio me ajudar a dividir os problemas e as soluções. Ela trabalhou para a indústria e teve sua formação acadêmica voltada à indústria. Quando nos conhecemos, abandonou aquele caminho para dedicar-se de corpo e alma ao artesanato. Deixou o prêt-à-porter para dedicar-se à haute couture. Ela mergulhou na paixão por este mundo, mas é prática o suficiente para me dizer e repetir que uma vinícola com nosso faturamento tem ao menos cinco funcionários no mundo do vinho comercial.
Filha, neta e bisneta de viticultores, criada no coração do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, Vanessa trabalha em vinícolas desde os 17 anos. Diz que a seiva das vinhas é a mesma que corre em suas veias. Formanda em enologia pelo Instituto Federal do Rio Grande do Sul, antes da Miolo ela trabalhara nas vinícolas Pizzato e Bueno Wines (de Galvão Bueno). No Atelier, entrou em contato com uma maneira de ver e fazer o vinho bem diferente da experiência na indústria.
– Nas vinícolas tradicionais e na escola de enologia, temos o palato educado pelos padrões estabelecidos conforme as necessidades do mercado. Todos os recursos tecnológicos disponíveis são aplicados para manter os vinhos dentro de um estilo agradável ao maior número possível de consumidores; uma certa padronização, safra após safra, pois o consumidor comum não costuma aceitar grandes oscilações. Já os produtores naturais não aceitam tal formatação. Não usam aditivos de correção e buscam justamente o contrário: que o vinho seja a expressão da fruta, da terra e da população de leveduras selvagens encontrada no vinhedo a cada vindima. No vinho natural, os resultados oscilam. O segmento desse mercado deseja exatamente essa aventura, a experiência de redescoberta a cada garrafa.
PRÓXIMO PASSO DE DANIELLE E VANESSA
É IMPLEMENTAR UM VINHEDO PRÓPRIO
Durante sete anos sommelier da Miolo, hoje dono da Santa Adega Vinhos Finos, de Florianópolis, Eduardo Machado Araújo escreveu em seu blog: "Há alguns anos, quando comecei a trabalhar e a me apaixonar pelos vinhos, ouvia os 'grandes enófilos' mais experientes e catimbados afirmarem que não existia vinho bom no Brasil, que o país não tinha terroir (o território apropriado para o vinho, o que inclui solo, clima, regime de chuvas etc) e que qualquer coisa que saísse daqui perderia fácil para algo produzido na terra dos nossos vizinhos sul-americanos, como se comparar dois pesos e duas medidas fosse correto. Danielle conseguiu um terroir brasileiro". Depois de provar o Fulvia 2009, o jornalista Georges Bertet, membro da Associação de Sommeliers de Paris, avaliou: "Um pinot noir todo em fineza, uma mão de ferro em luva de veludo, podendo rivalizar com os melhores pinots noirs do mundo".
Essas são algumas das manifestações que estão no site do Atelier Tormentas, onde se pode saber, também, sobre o encontro de Danielle com o barão Philippe de Rothschild no hotel de luxo Saint Andrews, de Gramado, na ocasião em que o europeu esteve apresentando seus rótulos para enófilos e importadores gaúchos, em setembro de 2015. Umberto Beltramea, italiano que dirige o hotel, chamou Danielle para apresentá-lo a Rothschild, que experimentou dois vinhos do Tormentas, o Fulvia Pinot Noir 2013 e o Prelúdio 2007, representando suas melhores alusões à Borgonha e a Bordeaux (terra do barão). Rothschild postou no Instagram uma foto com o Prelúdio na mão: "Melhor vinho brasileiro de uvas bordalesas que já provei".
– Foram vários os eventos em que Umberto Beltramea colocou em evidência nossos vinhos, denotando uma deferência raramente encontrada nos "formadores de opinião" brasileiros – observa Danielle. – A maior parte de nossos conterrâneos segue ignorando totalmente o surgimento de uma alta vinicultura em solo pátrio nestes últimos 10 anos. Em Porto Alegre, que é a nossa capital, não sou conhecido; nenhum restaurante tem os meus vinhos.
Esse tipo de observação crítica é cada vez mais raro nas manifestações de Marco Danielle. No início do trabalho como vinhateiro, ele costumava irritar alguns participantes de fóruns na internet, pois o vinho brasileiro não era levado a sério nas rodas de discussão.
– Era sinônimo de porcaria, e eu gostava de provocar o establishment, dizendo que nosso solo e nosso clima eram bons para produzir grandes vinhos, e a natureza não poderia ser culpada pela mediocridade dos homens que estavam fazendo vinhos ruins.
O resultado de seu trabalho acabaria por torná-lo respeitado pelo mundo do vinho, e o convite da Miolo para a referida homenagem é umas das provas disso.
– Eventualmente preciso usar o termo "indústria" para apontar importantes diferenças conceituais entre produtos de série e elaborações artesanais, mas tento fazê-lo com o maior respeito, em resposta ao respeito que o mercado me defere. Claro que isso pode, eventualmente, causar mal-estar, pois é impossível ser honesto agradando a todos o tempo inteiro. Hoje posso deixar que os vinhos falem por si, não preciso mais defender o nosso potencial vinícola verbalmente, como foi no começo, quando a divulgação conceitual do próprio trabalho era o único recurso para a sobrevivência.
Sobre o fato de os vinhos do Atelier terem suplantado rótulos franceses célebres em degustações às cegas, o que ocasionou na época algumas desconfianças e invejas, Danielle afirma que jamais patrocinou comparações dessa ordem. "Meu objetivo com o presente relato" – diz no site – "não é demonstrar que o Fulvia Pinot Noir de R$ 120 ficou à frente de um Mouton Rothschild de R$ 5.200 e de um Romanée-Conti de R$ 3.980 na preferência dos especialistas. Seria muito simplista de minha parte, muito vulgar. Vinho é bem mais que isso. Honra-me não o resultado em si, mas ter sido digno de participar de uma comparação dessas".
No dia 10 de janeiro, Danielle e Vanessa vão a Amsterdã, onde o importador Willem Blankenstein apresentará os vinhos gaúchos em uma das duas palestras que proferirá na Wine Professional 2017. O lema do Atelier, Ars Ardor Honor ("arte, paixão e honra"), presente em todos os rótulos, abrirá outra fronteira. Mesmo havendo quem as conteste, por redutoras, as expressões "Velho Mundo" e "Novo Mundo" são parte indissociável desse universo, a Europa de um lado, as Américas, a África do Sul e a Oceania de outro. Danielle, que tem cidadania italiana (e, além de italiano, fala inglês, francês e espanhol), comenta:
– O Rio Grande do Sul é o Velho Mundo vinícola do Novo Mundo. Não existe lugar do Novo Mundo que produza vinhos de estilo tão europeu. O pinot noir é um termômetro desse refinamento. Nosso solo é muito particular, e mais: os grandes vinhos são "vinhos de chuva", são de lugares em que chove. Na Argentina e no Chile não chove, eles precisam irrigar as vinhas, o que não é a mesma coisa.
Se até agora a vinificação era o centro das ocupações e preocupações do Atelier, acostumado desde sempre a adquirir de outros produtores sua matéria-prima, em futuro próximo entrará em cena justamente a questão do solo, do tão valorizado terroir, como antecipa Vanessa.
– Como filha de colonos, sempre fui muito ativa, nunca tive reservas quanto a trabalho braçal. Nas vinícolas, sempre fiquei com as mãos tingidas de vinho e movimentei pesos. O Marco não me deixa erguer pesos e encardir as mãos durante a safra, e isso me incomoda, pois não sirvo para dondoca. Embora na imaginação das pessoas prevaleça somente o lado glamoroso do vinho, há muito esforço físico numa produção artesanal. Marco é urbano, é um vinhateiro de sucesso, mas não tem essa relação com a terra que eu tenho. Nossas experiências irão se completar muito no próximo passo do Atelier, que prevê, em curto prazo, a implantação de um vinhedo próprio.
Incrustada em um bosque na Vila Suzana, próximo à entrada de Canela, a sede do Atelier Tormentas destaca-se das casas da redondeza pelas dimensões. É um prédio de pedra de dois andares aparentes e um subsolo (onde está a adega), com design arquitetônico característico das vinícolas modernas. Iniciada em 2011, só agora a construção está perto do término, coincidindo com a explosão de reconhecimento em 2016 – por exemplo, a edição de outubro da revista Decanter dedicou quatro páginas a uma reportagem sobre o panorama vinícola brasileiro; entre vinícolas como Pizzato, Cave Geisse e Casa Valduga, o Atelier é elogiado. Danielle diz que está em plena transição entre uma pequena vinícola e uma futura empresa organizada, com colaboradores. Ele e Vanessa recebem apenas visitantes ligados ao mundo do vinho – sommeliers, enófilos, jornalistas – e com marcação antecipada. Ainda não há estrutura para visitas nem vendas diretas ao público. No Rio Grande do Sul, por enquanto, compras só pelo site (tormentas.com.br). Em São Paulo e Rio, podem ser encontrados em umas poucas enotecas. Muitos clientes compram os vinhos en primeur, isto é, com bastante antecedência, às vezes até sem saber que rótulos receberão. Os preços variam de R$ 160 a R$ 220, podendo chegar a R$ 720 (caso das últimas unidades da garrafa Magnum do Âmbar 2014).
– Nossos clientes não compram apenas vinho, compram uma experiência sensorial, espiritual, intelectual – filosofa Marco Danielle. – A vinícola foi construída com forte base conceitual, a geração de textos é constante, nosso público espera isso. Os clientes escrevem relatos emocionados de suas experiências com os vinhos e aguardam respostas, esse elo se criou e é o que faz a diferença. Quem fez o projeto crescer foram eles.