Por dias, a universitária Daniela Valer, 24 anos, ignorou repetidos chamados procedentes de um telefone do Rio de Janeiro, certa de que se tratava de uma oferta da operadora de celular na qual não estaria interessada. Quando finalmente atendeu, veio a surpresa que a fez voltar quase sete anos no tempo.
– Mãe, você não vai acreditar – anunciou ela à aposentada Rosemeri Viera da Silva ao desligar.
LEIA AS OUTRAS HISTÓRIAS:
2016: o ano em que Verno e Nelsi venceram um concurso
2016: o ano em que a família Prestefelippe reencontrou o cão Rocco
2016: o ano em que Maira arranjou um emprego
2016: o ano em que Viviane aprendeu a andar de bicicleta
A partir do cruzamento de informações genéticas, o Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome) enfim encontrara um receptor compatível com Daniela que poderia se beneficiar de um transplante. A estudante se cadastrara em 2009, em um mutirão organizado para atender ao apelo da família de uma paciente com leucemia. Ela não pôde efetivar a doação na época, por não haver compatibilidade entre ambas, mas seus dados permaneceram nos arquivos do Redome, que hoje contabiliza mais de 4 milhões de pessoas dispostas a doar medula óssea – o transplante é indicado para tratar um conjunto de cerca de 80 doenças. Com o passar do tempo, Daniela até esqueceu que estava listada como potencial doadora. Agora, no início de 2016, estava sendo convocada para salvar uma vida.
Entre a coleta de uma pequena amostra de sangue e as ligações do insistente telefone de DDD 21, Daniela passou de adolescente a adulta e enfrentou a perda do pai. Do diagnóstico de um câncer no estômago, no final de 2012, até a morte de Ermindo, passaram-se apenas quatro meses. A família assistiu impotente à rápida deterioração do quadro.
– Nunca acreditamos que vai acontecer com a gente. Eu achava que ele ia se curar – recorda.
Leia mais:
O que querem, no fim da vida, doentes sem chance de cura
Vamos vencer o câncer? Desafios e avanços no combate à doença
Festa celebra o fim do tratamento de menina contra a leucemia
Antes de efetivar a doação de medula, Daniela passou por exames, em outubro, que atestaram seu bom estado de saúde. Conversou com uma médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e conheceu detalhes do procedimento. A partir daquele momento, ela não poderia mais desistir – o receptor entraria na fase de preparação para o transplante, passando por uma quimioterapia que destruiria todas as células de sua medula óssea, a ser refeita com a porção doada. Um eventual cancelamento da operação poderia ser fatal. Daniela assinou um termo de consentimento: “Eu li as informações e entendi a importância da minha decisão”.
– Jamais pensei em desistir – conta.
A universitária ficou dois dias internada no HCPA, no início de novembro. Após a anestesia raquidiana (do umbigo para baixo) – na maior parte dos casos, é feita anestesia geral –, com a paciente de bruços, furou-se a pele com uma agulha grossa em dois pontos para aspiração da medula de dentro do osso da bacia. A quantidade extraída varia de acordo com o peso do doador e do receptor – em média, retiram-se 20ml por quilo de peso do doador –, e o organismo a repõe naturalmente. Daniela sentiu dor no local da punção e enfrentou um período de anemia após a intervenção, reações normais que logo desapareceram.
Luis Fernando Bouzas, coordenador do Redome, explica que o risco maior é o da anestesia e que não há qualquer sequela definitiva. Ele elogia quem se dispõe a passar por isso para salvar a vida de um estranho, que pode estar em qualquer ponto do país ou até no Exterior:
– É emocionante. Impressionante.
Doador e receptor não costumam receber qualquer informação a respeito da identidade um do outro, mas Daniela, muito curiosa, acabou descobrindo, questionando a equipe médica, que o destinatário de sua boa ação era provavelmente uma criança. A jovem se comoveu com a coincidência – em um sonho recente, um pequeno paciente, carequinha, com idade aproximada entre seis e oito anos, vestido com uma camisola de hospital, acariciava-lhe o rosto e dizia:
– Bem que o seu pai me falou que você iria me ajudar.
Ainda internada, a estudante postou no Facebook uma foto que a mostrava deitada no leito, sorrindo, acompanhada de um relato sobre a experiência: “Hoje eu fiz a coisa mais nobre e grandiosa da minha vida. O câncer já foi bem presente na minha vida. Dentre tantos familiares que tiveram a doença, um deles foi meu pai, e na época eu não podia fazer nada por ele, ninguém podia. Mas hoje eu pude ajudar alguém, fiz isso por mim, pelo meu pai, pela minha família, pelo receptor e pela família de quem está recebendo. Doe, ajude. Tem muita gente precisando de mim, de ti, de nós. O sentimento hoje é de gratidão por Deus ter me dado essa missão”.
Por enquanto, o que Daniela sabe é que o transplante foi bem-sucedido. Se houver interesse de ambas as partes, doador e receptor poderão trocar correspondência, por intermédio do Redome, seis meses após a cirurgia. As regras variam de acordo com o país, mas no Brasil é permitido que os dois mantenham contato por telefone depois de transcorrido um ano e meio. Daniela já faz planos para um possível encontro, mesmo que demande uma viagem.
– Quero muito. Tomara que a pessoa queira também.