Maria Miguel, 52 anos, circula pela agência Rio Branco do Banrisul, em São Leopoldo, com a caneta na mão. Em certos dias, chega a distribuir mais de cem assinaturas. Gerente-adjunta, é responsável pela gestão de 18 funcionários, pelos contratos de compras e despesas, pelos processos judiciais. Todo o setor administrativo e operacional passa pela mão dela, que costuma andar identificada com o crachá do banco e tem sobre sua mesa uma placa com seu nome e seu cargo. Ainda assim, não é raro que os clientes se postem diante dela com estranhamento:
– Gostaria de falar com o gerente.
Sem desfazer o sorriso largo, Maria costuma dizer:
– Pode falar, está na frente dela.
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Ela sabe que o lapso não é circunstancial. Em um país com poucos negros em posições de comando, a falta de reconhecimento é sintomática.
– Existe muito preconceito, mas quando te veem no cargo as pessoas mudam de atitude completamente. Com um cargo... Parece que tu fica branco – constata.
Quando era pequena, ouvia com frequência expressões como "nega macaca", "nega do cabelo duro". Hoje, acredita que o preconceito assumiu novas formas.
– Antes a gente vivia naquele meio e era normal, se acostumava a ouvir essas coisas. As novas gerações já não ouvem mais isso, mas é um racismo escondidinho, camuflado... nos detalhes. Quem não vive isso acha que não existe – define.
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O detalhe pode estar no não dito. Maria aprendeu a ser minoria nos espaços que frequenta. Sabe que ao entrar em um restaurante "mais de 90%" dos clientes são brancos. Cansou de entrar em lojas e ser a última a ser atendida. Ou de pedir para ver algum produto e ouvir da funcionária "Ah, isso é muito caro!" – mesmo que não tivesse perguntado o preço.
O detalhe também pode vir disfarçado de boa intenção. Certa vez, durante férias em Torres, ela e a irmã levaram as crianças ao parque de diversões. Entre um brinquedo e outro, foram abordadas por uma senhora, que perguntou se elas gostariam de trabalhar como doméstica na casa dela.
– Se nós fôssemos brancas, ela iria nos parar para perguntar aquilo? Em hipótese alguma. Porque acham que o negro sempre vai ter um trabalho braçal, sempre vai estar precisando. E não é assim – revolta-se.
O racismo cotidiano incomoda, mas está longe de paralisá-la. Desde criança, compreendeu que as dificuldades podem ser contornadas com obstinação. Nascida em Criciúma, veio com a família para o Rio Grande do Sul quando tinha oito anos. O pai, que trabalhava em Minas de Carvão, se mudou para Esteio em busca de melhores oportunidades. Cansada de esperar pelo marido, a mãe alugou um caminhão, colocou os seis filhos e a mudança em cima e apareceu de surpresa para encontrá-lo. Durante dois meses, todos se espremiam no mesmo quarto, emprestado por um tio em Esteio. Sem renda, a família contava com a boa vontade da vizinhança.
– Até lanche eu ganhava dos colegas, porque ia para a escola e não tinha o que comer – lembra.
A penúria impunha sacrifícios, mas o que mais a marcou daquela época foi um outro revés. Por causa da má qualidade do ensino da escola anterior, Maria não conseguia acompanhar o ritmo dos colegas do terceiro ano do primário. Nunca esquece que, ao ser chamada no quadro, não sabia quanto era 3 vezes 4. Por causa das dificuldades com as equações de multiplicação, foi mandada de volta para o segundo ano. O rebaixamento mudou sua vida:
– A partir dali, sempre fui a melhor aluna de qualquer sala de aula, para nunca mais acontecer aquilo de novo.
Determinada a vencer a tabuada, se formou em Matemática. Foi a primeira entre seus irmãos a concluir um curso superior. O que acabou inspirando toda a família. Todas as irmãs mais novas chegaram à faculdade. No caso de Maria, o anseio apareceu enquanto trabalhava no chão de fábrica do Lanifício Kurashiki, em Sapucaia do Sul, sua fonte de renda dos 16 aos 18 anos.
– Como vi que não queria aquilo para mim a vida inteira, com aquele barulhão, suando o dia inteiro, senti que precisava fazer algo diferente. Então decidi fazer vestibular.
Ao sair do emprego, Maria conseguiu um acordo com os chefes e obteve uma indenização. Com o dinheiro, pagou à vista o primeiro semestre do curso de Matemática na Unisinos. A partir do segundo semestre, conseguiu o crédito educativo. Durante a graduação, conciliava as aulas noturnas com outros empregos. Trabalhou em lojas, foi recepcionista de escritório e professora temporária da rede pública. Em 1985, fez o concurso para o Banrisul. Foi o primeiro concurso do banco, que antes tinha seu quadro preenchido por indicações. Dos 30 mil candidatos, pouco mais de mil foram aprovados. Maria foi chamada para o cargo de escriturária seis meses depois, em Novo Hamburgo. A seu pedido, transferiu-se depois para Sapucaia do Sul, onde morava sua família. Lá, se casou e teve uma filha, Arinne.
Depois de se divorciar, quando Arinne já estava crescida, decidiu investir mais na carreira. Com disposição para mudar de cidade de tempos em tempos, se habilitou para uma vaga de supervisora. Aprovada na seleção, foi transferida para Estância Velha para exercer seu primeiro cargo comissionado.
– Lá é cidade alemã, e daí chega uma supervisora afrodescendente. No início o pessoal estranhava, olhava a plaquinha... quem é essa aí? Depois foram se acostumando, a convivência foi mudando – conta.
Ficou um ano e meio como supervisora e, há sete anos e meio, foi promovida a gerente-adjunta. No cargo, é avaliada o tempo todo, com metas a cumprir, metas de despesa, pontuação a cada semestre. Para garantir boa performance, fez pós-graduação em Gestão Bancária e faz curso de atualização gerencial.
– O estudo foi a libertação, por isso nunca parei de estudar – empolga-se.
Hoje com 21 anos, a filha entrou no curso de fonoaudiologia da UFRGS (sem cotas) e atualmente faz estágio no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre.
– Tem muito preconceito ainda, mas acho que no Brasil falta também o negro procurar mais crescer, estudar. Isso também tá faltando. Às vezes as pessoas se escondem naquele discurso "ah, sou pobre, não tive nada". Mas será que tu procurou? É mais fácil se fazer de vítima – raciocina. – A mensagem que eu queria passar é essa: não é pelo fato de não ter dinheiro, não ter condições, de às vezes até passar fome, que tu vai desistir de buscar o melhor. É uma luta cansativa, mas vale a pena.
*ZERO HORA