Há um pedacinho do Rio Grande do Sul que fala japonês. Em que as pessoas se comunicam baixinho, evitam olhar nos olhos de estranhos e preferem se resguardar em casa ou no campo. Habitado por gente que mantém vivas tradições milenares e colhe os frutos do trabalho duro com paciência e disciplina. Que anda a passos curtos, sem pressa, mas determinados. Uma terra com imigrantes que, saudosos e temerosos do lugar a que disseram adeus na juventude, ainda hoje lutam para encontrar um rumo – não mais para si, mas para seus filhos e netos.
Na colônia japonesa de Ivoti, a maior do Estado, essa busca por um caminho passa por várias vias: vai desde manter os negócios e terrenos conquistados pela família no Brasil, perpetuando a colonização, até a formação da prole em áreas além da administração e agricultura, que marcam a vida da maioria das pessoas que ainda vivem lá. É um misto de apego à tradição e adaptação à modernidade que divide os herdeiros dos primeiros japoneses que chegaram à cidade do Vale do Sinos, há 50 anos.
A migração a Ivoti começou em 1966 e se intensificou no ano seguinte, quando um total de 26 famílias fixou residência por lá. O movimento teve início 10 anos depois da chegada dos primeiros japoneses ao Rio Grande do Sul, Estado que entrou para a rota dos migrantes orientais em 1956. O desembarque que marca a sua chegada aconteceu em 20 de agosto, no porto de Rio Grande (já a colonização japonesa no Brasil começou bem antes, em 1908).
Passadas seis décadas desde o início da imigração japonesa ao solo gaúcho, esse pedacinho do Japão em Ivoti já cresceu, estagnou e decaiu. Viu os primeiros jovens solteiros que vieram, de navio, do outro lado do mundo tentarem um recomeço, encontrarem um emprego, criarem suas famílias. O início em terra estranha foi difícil, feito passinho por passinho, no ritmo de um país que estava se recuperando de duas grandes e devastadoras guerras.
– Muitos não gostam de lembrar daquela época. Nossos pais sofreram, mas decidiram escapar de ainda mais sofrimento. Aqui, decidimos preservar essa memória – explica Kiyomi Miyabe, responsável pelo Memorial da Colônia Japonesa de Ivoti, que reúne documentos e objetos trazidos por esses primeiros imigrantes.
Há roupas típicas, passaportes, cartões-ponto, ferramentas diversas no memorial. São poucas, porém, as fotos: as famílias ainda gostam de mantê-las por perto, recordação da longa viagem.
Essas famílias se estabeleceram e aumentaram. Atraíram compatriotas – estima-se que, no início deste século, a população na colônia japonesa de Ivoti chegou a 60 famílias, quase o dobro da atual. Só que as crianças foram crescendo, criando vontade de conhecer aquela terra da qual ouviam os pais falarem, que os antigos retratos mostravam. Muitos partiram rumo ao Oriente, outros tantos estão espalhados pelo Brasil – em Porto Alegre, São Leopoldo, São Paulo, Rio de Janeiro.
Dessa segunda geração, ou nissei, como os primeiros migrantes se referem aos filhos, nascidos no Brasil, pouco se vê na colônia. Os que seguem em Ivoti dão continuidade aos negócios dos pais ou tocam suas próprias iniciativas. A maioria, relacionada à terra: são plantações de frutas, de verduras e de flores que colorem as ruas e casas e contribuem para garantir ao pequeno município seu epíteto de "cidade das flores".
Porque foi na terra que os issei, os japoneses "originais" que aqui chegaram, encontraram seu rumo. No começo, se espantaram com a vastidão do terreno, com as peculiaridades do clima. Entre os primeiros a chegar, em 1967, o viticultor Tadao Yoshioka testou de tudo: pêssego, kiwi, ameixa, pera, maçã, laranja. Descobriu um nicho quando soube que as cidades "lá de cima" da serra gaúcha cultivavam mais uvas para vinhos do que de mesa. E que, por um motivo peculiar, não haveria muita concorrência.
– Laranja, qualquer um planta. Uva, tem que usar a cabeça – diz o reservado Yoshioka, apontando o dedo para a testa.
Apesar de viver há quase meio século no Brasil, o agricultor patina no português. Em casa, fala japonês com a mulher, Nobuko, que conheceu por meio de uma agência de matrimônio e desde então o ajuda com o trabalho no campo. Ensinou a língua aos filhos, que foram criados em meio às duas culturas e hoje vivem em Porto Alegre ou no Rio de Janeiro. Nenhum quis continuar com o cultivo.
Os issei que continuam morando na colônia japonesa de Ivoti não querem sair. Lembram do período difícil vivido no Japão e da longa viagem – cerca de 40 dias entre o porto mais próximo de Hiroshima e o de Santos – e citam a boa recepção em terras gaúchas para explicar a falta de vontade de voltar ao país asiático. Alguns não conseguiram manter contato com a família e, quando retornam à terra natal, são recebidos como forasteiros. "Estrangeiros" que, com a esperança de dias melhores, abandonaram suas casas e vieram para cá.
– O Japão estava uma bagunça na época, não sabíamos o que fazer da vida. Eu era estudante, e as universidades estavam paradas. Não havia muita perspectiva – lembra Nobuichi Onishi, que cultiva e vende flores para Ivoti e Porto Alegre.
Aos 19 anos, em 1970, ele entrou no navio que o levaria a Rio Grande. Solteiro, com formação superior incompleta, trazia na bagagem conhecimentos de agricultura, o que contribuiu para que definisse seu destino. Mas esse não foi o único motivo:
– Tinha Estados Unidos, Canadá ou Brasil. O Brasil era grátis (a passagem de navio).
Onishi desembarcou em São Paulo, mas preferiu seguir rumo ao Sul.
– Eu escolhi onde tinha menos japonês. Mas, chegando aqui, tinha um monte de japonês!
Reuniu-se com outros imigrantes em uma pousada antes de partir para Curitiba. Logo no primeiro dia, teve uma má experiência. Quando foi dormir, sua mala foi furtada. O pouco que havia de valor foi levado, e as roupas ficaram atiradas pelo chão.
A partir dali, começou a cuidar mais dos pertences.
– Fui batizado. Vi que não era que nem no Japão. Não dava para deixar as coisas por aí.
No segundo dia de viagem, outra decepção: o Fusca em que ele e outros japoneses saíram de Santos foi atingido por um caminhão. O restante do trajeto teve de ser feito de ônibus. Chegando a Ivoti, estabeleceu-se ao léu, sem energia elétrica, sem água. Encontrou um poço onde tomar banho e batalhou até conseguir um emprego. Demorou a prosperar, mas nunca pensou em voltar:
– Era guri, procurando uma vida de aventuras. Não vim pelo dinheiro. Quando cheguei, não tinha nada. Não vivia, sobrevivia. Mas, por mais difícil que tenha sido, sempre acreditei que aqui seria melhor.
A história é contada com leveza, entre sorrisos e gracejos. Onishi é feliz, gosta da vida que construiu. Trabalha como comerciante de flores, administrando o negócio em uma sala abarrotada de documentos e com quase nada de tecnologia. Faz as contas em uma calculadora antiga, posta a um canto da mesa que reúne pastas de arquivos. Não tem computador.
Com as mãos calejadas, ensinou o filho, Nelson, nascido em Dois Irmãos, a tirar os espinhos do caule, a aparar as flores e reuni-las em bonitos arranjos. Vende plantas diversas no atacado, principalmente para os municípios vizinhos no Vale do Sinos e para a Ceasa, em Porto Alegre. O sorriso fácil só desaparece quando surge o pedido de posar para fotos.
– Por quê? Não precisa, não precisa...
Mas a relutância passa. Como passou, também, um pouco do encanto com o Brasil. Ao comparar a evolução das duas nações ao longo das décadas em que esteve aqui, o semblante de Onishi muda. E o discurso passa a ser bem mais crítico:
– A gente comia só batata-doce. Fomos destruídos pela última guerra. Por isso, fomos embora, muitos de nós. Mas o Japão logo cresceu. Eu não via meu pai em casa: às 5h, estava trabalhando. Voltava só às 21h. Todos os japoneses foram assim. Aí o país cresceu: em 1980, conseguiu se estabilizar. Porque eles não deixaram de lado o trabalho duro e a educação. Não estou falando mal. Mas aqui é diferente. Tem que melhorar. Se não, não chega perto do Japão.
DISTANCIAMENTO E DISCRIMINAÇÃO
Uma vistosa sakura (pronuncia-se "sacurá”) indica o local onde Satoshi Suzuki construiu seu pequeno império: uma floricultura, uma pizzaria, alguns empreendimentos agrícolas. É início de agosto, e a cerejeira japonesa está em seu período mais florido. À exceção das feições e do nome de Satoshi, parte da segunda geração de japoneses da família em Ivoti, a sakura é a única indicação visível da cultura milenar. Os Suzuki não fazem questão de manter a tradição, ao menos não para quem os vê de fora. São uma família brasileira. Aos pés da árvore símbolo do Japão, Satoshi, 47 anos, exibe distanciamento:
– Quando está florida assim, a sakura representa o prenúncio da primavera. Tem um simbolismo forte para os japoneses mas, para mim, mesmo nessa época, remete apenas à nossa residência.
Casado com uma brasileira descendente de italianos, o empreendedor, ao contrário de muitas das famílias que se assentaram nas proximidades da colônia japonesa, não viu surgir em casa o interesse pela vida no Japão. Ele atribui a volta ao Oriente como característica da segunda e terceira gerações de japoneses que não se adaptaram bem ao Brasil:
– Nas famílias que já tinham uma vida próspera, que eram contentes de estar aqui, que trabalhavam bem, os filhos não quiseram ir para o Japão.
Satoshi acrescenta outra explicação – os japoneses que vieram para cá, bem como seus descendentes, seriam malvistos em sua terra natal:
– Não vejo nenhum japonês que veio para cá querendo ir morar no Japão. Mesmo com meus pais, que são japoneses, ninguém quer conversar lá. Eles se sentiam discriminados. O pessoal pensa: "Ah, quando o Japão estava mal, depois da guerra, com todo mundo passando fome, vocês fugiram. Agora que o Japão está melhor, vocês estão voltando".
Sem laços familiares no Japão, esse retorno seria ainda mais complicado do que construir uma vida cômoda no Brasil:
– No Japão, as coisas são difíceis. Você leva uma geração para ter casa, um terreno, ser próspero. Os pais trabalham para que os filhos tenham alguma coisa. Aqui, você batalha 10 anos e consegue comprar uma casinha, um carro. No Japão, não existe isso.
Enxergando uma colônia povoada, principalmente, pelos primeiros migrantes e alguns poucos de seus descendentes, Satoshi mostra pouca esperança quanto à manutenção do espaço, localizado a cerca de 4,5 quilômetros do centro de Ivoti, como uma comunidade. Vê a população japonesa como estrangeira na cidade, ainda pouco integrada à comunidade local.
– Acabou que colônia japonesa recebeu imigrantes, ajudou a criar seus filhos e hoje tende a virar chácaras de lazer – lamenta.
O FUTURO DA TRADIÇÃO
Se depender dos jovens ivotienses, porém, a tradição japonesa não há de se perder. Com aulas semanais sobre os povos que ajudaram a colonizar a cidade, cerca de 1,5 mil alunos aprendem semanalmente sobre a arte, as danças típicas, os esportes preferidos e a história do povo oriental – e também dos africanos, indígenas e italianos, entre outros. No Programa Lazer Unindo Gerações (Plug), projeto social bancado pela prefeitura de Ivoti, essas culturas se mantêm vivas.
Toda quinta-feira, durante o período letivo, Nicolly Exner, 11 anos, e Amanda Beier, sete anos, gostam de vestir seus coloridos happis – vestimenta festiva, geralmente usada em celebrações – para fazer pinturas, origamis e aprender alguns passos de danças de origem japonesa. O trabalho artístico as atrai mais do que o difícil idioma japonês – em que elas ainda titubeiam para dizer "arigatô” (obrigado) ou "konnichiwa" (boa tarde).
Para Ayslan Zambeli, 12 anos, as aulas, feitas no contraturno escolar, servem para conhecer melhor a cultura da família do pai, que tem origem japonesa. O apreço por animes e pelas roupas típicas – ainda que não tanto pela comida oriental – também são motivo de inspiração para ele:
– Eu fico feliz quando vejo essas referências. Me sinto orgulhoso da minha cultura.
PARA CELEBRAR
Festival do Japão RS
> 20 e 21 de agosto
> Na Academia da Brigada Militar (Av. Aparício Borges, 2001, bairro Partenon), em Porto Alegre
> O festival chega a sua 5ª edição celebrando os 60 anos da imigração no Estado divulgando tradição, costumes, culinária e o lazer típicos do Japão. São realizadas diversas exposições e oficinas.
> Entrada: doação de 1 quilo de alimento não perecível
> Informações:festivaldojapaors.com
Feira da Colônia Japonesa
> 28/8, 25/9, 30/10 e 27/11, das 11h às 17h
> No Memorial da Colônia Japonesa (Rua Sakura, 1.353), em Ivoti
> Na feira, são expostos produtos do artesanato japonês, como fontes, pinturas e origamis. Também são vendidos produtos colhidos pelas famílias japonesas, como uvas, e comidas típicas. As mais procuradas são guioza (pastel), natto (soja fermentada) e maju (doce de feijão).
> Entrada franca
> Informações: (51) 3564-2803