Em uma sala de aula de crianças do 2º ano do Ensino Fundamental, com idades entre sete e oito anos, a professora pergunta:
– Quem trouxe os Shopkins hoje?
Oito meninas de uma turma de cerca de 20 crianças levantam a mão. A pergunta feita pela professora é incomum em plena terça-feira, afinal, não é o dia do brinquedo, quando os alunos do Colégio Batista, em Porto Alegre, podem levar as geringonças favoritas para a escola.
No último ano, os Shopkins tomaram conta das brincadeiras. As meninas carregam caixinhas ou sacolinhas cheias. Comparam coleções, dizem qual foi o último item raro que ganharam e fazem planos para pedir mais aos pais. Disponível em lojas especializadas e supermercados do país, o colecionável desafia pais que querem impor limites ao consumo de brinquedos e instiga reflexões sobre estereótipos de gênero.
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O universo cor-de-rosa desse brinquedo, fabricado pela australiana Moose, consiste em colecionar pequenos itens que representam produtos que podem ser comprados em um shopping real _ daí o nome "Shopkins", da palavra shop, "comprar" em inglês. Todos não medem mais do que três centímetros e ganham olhos, nariz e boca, com variadas expressões.
– Ela quer uma festa de Shopkins, quer se vestir de batonzinho e pedir só Shopkins aos convidados. Como vou fazer isso? – questiona, com bom humor, Eliane Silveira, 39 anos, mãe de Manuella, sete anos, que já contabiliza mais de 40 itens em sua caixinha.
Em uma conversa com meninas entre sete e oito anos, um consenso: o barato é trocar. Os itens repetidos que vem dentro dos ovos-surpresa ficam disponíveis para "negociar" com as amigas.
As bonecas – último lançamento da linha Shopkins – são as que fazem as compras. Mas as tradicionais Barbies também viram consumidoras nas histórias. Não é por acaso que o slogan do brinquedo em inglês é "Once You Shop, You Can't Stop", em tradução livre, "Uma vez que você compra, não consegue parar".
– Quase todos os brinquedos têm alguma coisa que incentiva o consumismo, mas, na escola, vemos que elas se tornam solidárias com os Shopkins. Já trazem pensando nas outras, aprendem a trocar – diz a professora Karen Linck.
Brincadeira de menina, brincadeira de menino
Laura Elizabeth Pinto, professora da Faculdade de Educação do Ontario Institute of Technology's, no Canadá, analisou o fenômeno Shopkins. Alguns pontos preocupam a especialista: a falta de conversa entre pais e crianças sobre consumo, as mensagens que o brinquedo pode passar para meninas e a necessidade de competição que se cria com o produto.
– Mas pode ser uma ótima oportunidade para ver o que as crianças pensam disso, incentivando o diálogo. É inclusive uma maneira de brincar com a matemática, ensinar sobre probabilidade, estatística, ou falar sobre alimentação saudável, já que há frutas e legumes entre os itens – avalia.
O Shopkins são a versão para meninas de um brinquedo também consolidado pela Moose, o Trash Pack, destinado a meninos. Os trashies são monstrinhos que vivem no lixo. Laura ressalta que, no caso dos Shopkins, tudo é hiperfeminilizado:
– É claro que todo mundo faz compras. Mas qual é a mensagem que passamos às meninas quando identificamos um brinquedo sobre consumo com mulheres? E brinquedos "nojentos" com meninos? Estamos mandando mensagens que podem estreitar a identidade das crianças e reforçar estereótipos de gênero.
Incentivo ao consumismo preocupa
Para a professora Laura, o brinquedo incentiva não só a glorificação às compras, mas uma competitividade que não é baseada em verdadeiros atributos ou conquistas. Achar um Shopkins raro ou ter uma coleção maior depende do poder aquisitivo. Ela acredita que os pais devem incentivar um pensamento mais crítico.
– É claro que as crianças, de diferentes idades, têm maneiras diferentes de brincar, mas tratar o acontecimento de achar um Shopkins raro como uma conquista passa a mensagem errada na criação – alerta.
Maria Angela Barbato Carneiro, professora da Faculdade de Educação da PUCSP e coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar, ressalta que crianças passam sentem a necessidade de colecionar. Antigamente, eram artigos da rua. – Já faz tempo que o brinquedo virou um objeto de consumo.
A criança não necessita de tantos itens para brincar. Há pesquisas que mostram que ela geralmente quer o que os outros têm. As brincadeiras culturais cederam espaço a esses itens que nem sempre são utilizados na brincadeira – pondera.Mas a febre de colecionar pode ser usada de uma forma educativa, garantem as professoras.
– A família pode orientar sobre consumo, usando as figuras dos Shopkins. Vai de cada família fazer esse trabalho – reforça Maria Angela.