IMAGENS
Júlio Cordeiro
Os vizinhos já se habituaram aos carrões e caminhonetes estacionados diante da casa desprovida de reboco, em uma rua sem saída, repleta de terrenos baldios, no município litorâneo de Capivari do Sul. Em uma tarde recente, quem desembarcou no endereço foi Glacy Osório, 63 anos, prefeita da cidade entre 2009 e 2012. Ela atravessou o portãozinho de madeira, seguiu até os fundos do terreno e avançou por uma porta escancarada, ingressando em um lar humilde, com divisórias feitas de tábuas sem pintura.
– Vim buscar uma bênção dessa mãe – anunciou.
Diante de si, Glacy tinha a aposentada Zeli da Rosa Neto, uma negra de 85 anos, cabelos totalmente brancos, acomodada ao pé de um altar tosco, apinhado de imagens de santos e livros de reza. O móvel foi construído e presenteado por um homem que atribui a Zeli uma cura milagrosa, que o teria poupado de amputar a mão. Desde então, é o nicho onde ela exerce o ofício que lhe deu fama, o de benzedeira.
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A ex-prefeita tirou da bolsa uma caixa de ovos, pagamento da consulta, e três peças de roupa, para serem benzidas:
– A camisetinha duma netinha, a camisa do outro neto e a camiseta do marido. E eu pessoalmente também vim buscar... No pequeninho, eles acharam que deu um sapinho vermelho, umas bolinhas em toda a boquinha. A mãe levou no médico, e ele disse: "Não, isso aí é uma virose, não é sapinho".
– Não está recolhido lá nos intestinos? Ele não está botando no cocô? – atalhou dona Zeli.
– Pois é. Mas ele não é branco, ele é vermelhinho – disse Glacy.
– Não é isso, minha filha. Eu te garanto. E ele não está doentinho?
– Ele esteve muito ruim.
– Então. Está recolhido. Está lá nos intestinos. Tem de benzer.
Acometidos por algum problema de saúde, sobretudo se for algo sério ou difícil de tratar, os brasileiros nunca se contentam em procurar só o médico. Por fé, por desespero ou por via das dúvidas, buscam em paralelo pessoas como dona Zeli, gente com a reputação de realizar curas milagrosas, o que quase sempre é creditado a alguma relação com o divino ou o além. As cidades estão repletas desses curadores, que atuam nas sombras, mas atraem multidões. São benzedeiras, pretos velhos, médiuns, parapsicólogos e todo um universo de terapeutas holísticos operando muitas vezes em terreno pantanoso e arriscando incorrer no artigo 284 do Código Penal, que define o crime de curandeirismo.
O presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Rogério Wolf de Aguiar, afirma que há um grau de tolerância com muitas dessas práticas, mesmo que elas não tenham qualquer respaldo científico, em decorrência do seu caráter religioso, que oferece algum tipo de conforto aos enfermos. Mas considera um problema sério quando resultam em abandono de tratamentos médicos.
– Vemos esse fenômeno como uma série de práticas que fizeram parte da história da medicina, desde o pajé. Se alguém quiser dizer que o sol gira em torno da Terra, isso é parte da história das nossas crenças. Mas do ponto de vista científico estamos mais adiante. Como Conselho de Medicina, não vamos discutir as crenças de alguém que pratica uma religião e que, dentro daquela religião, tem um determinada ação para enfrentar problemas de saúde. São pessoas que, com o seu sofrimento, com a ameaça de morte, estão vulneráveis a ouvir promessas vãs. O médico não pode fazer isso, ele tem de lidar com o problema na base da realidade. Por isso, às vezes, é mais fácil para um paciente acreditar no milagre, sem sacrifício, sem dor, sem cirurgia.
Alguns dos personagens com fama de ter o dom da cura são como fósseis vivos, remanescentes de um período no qual as fronteiras entre medicina, religião, magia e alquimia estavam borradas, e no qual o acesso a médicos e mesmo a padres era algo para poucos, um vazio que acabava por ser preenchido pelas benzedeiras e curandeiros. Nascida e criada nas chácaras de Capivari do Sul, com 13 irmãos, Zeli não foi à escola, nunca saiu da região e acabou por casar com um primo, do qual enviuvou há decada e meia. Foi por causa dos seis filhos que deu os primeiros passos como benzedeira, aos 24 anos:
– De primeiro, tinha benzedeira para tudo que era lado. Não tinha médico. Aí, eu ganhei a primeira filha. Essa criança estava sempre doente, mas eu nem sabia nada de oração, de benzedura. Estava sempre doente e eu tinha de sair, ir lá na Santa Rosa, pedir para uma mulher benzer. Os ricos traziam o doutor de Osório, mas a gente não tinha dinheiro, porque aqui sempre foi um lugar em que não havia emprego, não havia salário, não havia nada. Fomos criados só com benzedura mesmo. Aí tinha uma velhinha que juntava arroz lá no campo do meu sogro, aí a velhinha chegou de carreta e ela era benzedeira. Eu disse para ela assim: "A senhora me ensina a benzer?". Diz ela: "Triste! Vai tirar o meu direito? Aí vai benzer e me quebra. Mas se me der uma xícara de açúcar, eu escrevo no papel uma benzedura de quebrante de criança". Faz 62 anos isso – relata Zeli.
Com a ajuda de uma cunhada que sabia ler, Zeli aprendeu de cor a oração rabiscada em um papel e começou a benzer os filhos. A partir dali, outras mães passaram a procurá-la com suas crianças, sempre para espantar o quebrante.
– Quebrante é olho grande, inveja, ciúme. Eu fico com ciúme do senhor. Um ciúme! Um ciúme! Do seu ordenado, da sua roupa, do seu caminhar, de tudo, e eu fico naquela coisa. Le atrapalho a sua vida. O senhor se sente ruim, se sente pesado, mas não sabe o que que tem – explica a mulher.
Foi apenas duas décadas mais tarde que ela começou a benzer para tudo e para todos. Zeli diz ter caído doente, ter vivido uma temporada no hospital, gritando de dor noite e dia, até ser remetida para casa, muito fraca. Na primeira noite, teve uma visão:
– Eu estava dormindo, e a Nossa Senhora apareceu na beira da minha cama, uma santa toda de branco. Ela disse: "Olha, para ficares boa, para curares dessa perna, tu vais ter de começar a benzer. Ou tu começas a benzer ou tu morres". Aí eu digo: "Não, então eu vou benzer". Não avisei ninguém, mas o pessoal veio, foi chegando. Vêm de tudo que é lugar, telefonam pedindo oração e depois mandam a resposta de que fez bem. Dizem que eu curei, que eu curei. Isso é um dom de Deus. Não é qualquer pessoa que pode fazer. Não sendo para ser, não adianta. Benzedeira não é estudo, é um dom que Deus manda.
A folclorista Elma Sant'Ana dedica-se a pesquisar as benzedeiras gaúchas há duas décadas e publicou um par de livros sobre o tema. Observa que se trata de uma tradição muito antiga e arraigada no Estado, quase sempre exercida por mulheres, que vão transmitindo as rezas para uma neta, para uma afilhada, perpetuando assim o ofício.
– A doença é a coisa mais frequente que existe, e as pessoas buscam a cura por uma força miraculosa, por poderes sobrenaturais. As benzedeiras são pessoas de bom coração. O nome delas corre de boca em boca. Todo mundo sabe onde tem uma – afirma Elma.
Essa mulheres, de pouca instrução e menos posses, não cobram pelos serviços. Conhecem orações para todos os tipos de males. Ainda que as benzedeiras se definam como católicas, algumas das rezas parecem distantes da doutrina da Igreja, e não raro estão pejadas de palavrões ("Ó mangas, ó changas, ó tangas, ó mirabelas, ó caga-verrumas, ó mija-fivelas, ó caralhos, ó bugalhos, ó peidos meus e da Maria e do Mateus; por que banana não comeste tu, por que não enfiaste o dedo no cu? Por que não me disseste que quebrante tinhas, que eu te curava com três alhos, três caralhos, com três bugalhos, com três fios, com três pavios, com três puta-que-os-pariu").
Glacy, a ex-prefeita, vale-se de Zeli há muitos anos e criou os filhos sob a proteção das rezas dela:
– Vou ao médico, mas sempre complemento com a benzedura.
Na tarde em que procurou Zeli, Glacy trazia queixas de vários integrantes da família. O neto e a neta seriam os primeiros a receber a reza da benzedeira, que diagnosticara sapinho recolhido no menino. Zeli apanhou nas mãos as roupas dos dois netos, analisou o feitio, espantou-se de como estavam crescidos e começou a rezar:
– Desça São Gosme e São Damião com seu manto protetor, abençoai... Como é o nome do guri?
– É Pedro.
– O Pedro e a Ane, abençoai esse casalzinho de irmãos. Pelo sinal da santa cruz, livra-nos Deus nosso senhor dos nossos inimigos, em nome do pai, do filho e do Espírito Santo. É ela que tá com o sapinho?
– É ele.
– É ele? Todos os perigos, todas as infecções, que seja tudo arredado neste momento, amém, aleluia. Que fique são na cabeça, ermo, sapinho na boca, sapinho recolhido nos intestinos, no estômago, que seja tudo arredado. Quebrante, olho grande, bruxa, ciúme, que seja tudo arredado. Ó divino pai eterno com seu manto protetor e a sua água benta, desça neste momento, abençoai neste momento essas crianças da cabeça aos pés, lava o corpinho dessas crianças da cabeça aos pés com essa sua água benta e manda tudo embora, todos os males desconhecidos, seja eles o que forem. Olho grande, inveja, ciúme, bruxa, atrapalho na vida, seja tudo arredado neste momento.
A reza prossegiu por alguns minutos, até Zeli, que clama ser capaz de sentir a dor de quem benze, interromper-se para fazer uma pergunta, colocando a mão em um ponto das próprias costas:
– Ele não diz que dói aqui? Ele tem uma dorzinha horrível aqui, ó, sapinho recolhido. Dói aqui. Aqui vem a ser os rins. Ele tem uma dorzinha horrível aqui. Principalmente na hora de fazer cocô. É isso aí. Em nome de Deus e da Virgem Maria, eu vou cortar esse sapinho nos intestinos, no estômago do Pedro, que esse sapinho não seja aumentado. Como serviço do dia de domingo e do dia santo, se tudo foi feito por Deus, em nome de Deus e da Virgem Maria eu vou cort... Cadê a tesoura? Não estava aqui? Ah, está aqui. Eu vou cortar esse sapinho nos intestinos do Pedro. Corta o rabo, corta a cabeça, em nome de Deus e da Virgem Maria. O que eu corto no Pedro? Sapinho preto, sapinho branco, sapinho encarnado, sapinho brabo, corta o rabo, corta a cabeça, em nome de Deus e da Virgem Maria – vai dizendo Zeli, enquanto passa a tesoura em um ramo de vegetação.
Depois de 13 minutos de reza pelas crianças, começa a oração por Glacy e o marido. Zeli os abençoa "na doença, na infecção, na dor, no estresse, no cansaço de dia a dia, olho grande, falsos amigos, inimigos carnais e espirituais" e pede que Jesus entre na residência do casal e proteja "a sua casa, o seu lar, o seu terreno, o seu dormitório, o seu carro do passeio":
– São Francisco, abençoai a lavoura, o campo, o arroz, o gado, a criação, seja tudo abençoado em nome de Jesus neste momento. Ele sofre bastante da coluna, né? Dói bastante. A coluna, as costas, os ossos. Mal estar às vezes dá, né? Soneira, vontade de dormir. É isso aí. E dói muito a cabeça, né? Pontada aqui, né? Ai, São Agostinho, Espírito Santo, abençoai a coluna desse casal. Dor nas costas, dor nos ombros, dor na coluna, dor na costela, dor na cabeça, extorsão no pescoço, dor no nervo asiático. Seja tudo arredado...
Em dado momento, Glacy entende que a reza chegou ao fim e se levanta para sair, mas Zeli impede:
– Não, não terminei, minha filha. Ainda está tão longe, Porque eu estou achando tanta coisa. Então já vamos fazer tudo de uma vez. A minha oração é demorada, às vezes tem gente que não gosta de esperar. Porque o que eu vou achando eu vou fazendo. Não adianta fazer pela metade. Tem gente que diz: "Ai, dona Zeli, chega". Então vai embora, minha filha. É isso aí. São Agostinho, abençoai, dor na coluna, dores lombares, dor nas cadeiras, cadeira aberta, dor no nervo asiático, mau jeito no corpo, que seja tudo arredado destes filhos neste momento. O que eu coso nesse casal? Coluna, osso quebrado, carne rendida e veia ofendida. São Torto que entorte e desentorte, que desligue e ligue e mande tudo para o seu lugar.
Após 26 minutos, a reza finalmente está completa:
– Minha filha, vai em paz, a tua fé te curou. Uma boa volta, em nome de Jesus, ao teu lar. Barbaridade! Credo! Eu sei que vocês já estavam cansados. Mas o que eu vou fazer? Eu estava achando, tinha de botar para fora.
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