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Júlio Cordeiro
Na noite anterior à benzedura de Zeli, em Canoas, uma jovem de 19 anos, Monique Braga, vestiu-se de branco da cabeça aos pés e estirou-se na sua cama, também coberta por lençóis imaculadamente alvos. Ao lado, havia posicionado um copo de guaraná tapado e uma vasilha de água fervida com as pétalas de duas rosas brancas. Monique embebeu uma toalha nessa água e a pousou sobre o ventre. Seguia as instruções que havia recebido dois dias antes, em um terreiro de umbanda, depois de encaminhar um bilhete com os dizeres "problema ginecólogico" ao Pai Thomé, um preto velho incorporado pelo médium Éverton Alfonsin, proprietário de um centro de treinamento em direção defensiva. Deitada em sua cama, Monique adormeceu à espera da cirurgia pelo espaço, uma forma de intervenção espiritual, marcada no terreiro. Pai Thomé viria operá-la às 21h.
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Éverton Alfonsin, 47 anos, preside a Federação Afro Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul, que informa ter 2,6 mil terreiros filiados. Todos os sábados, na Casa de Caridade Pai Thomé, ele incorpora o preto velho e oferece consultas a dezenas de pessoas em busca de cura ou conforto – não há cobrança e não são aceitas doações. Nascido em Alvorada, Alfonsin veio de família católica e foi morador de rua dos 10 aos 16 anos. Aos 22, algo contrariado, aceitou o convite do irmão para ir a um centro de umbanda.
– Eu achava que era só beberagem, cachaçada e matar bicho. Daí fui ver e a umbanda não tem nada a ver com isso. A dona da casa veio falar comigo e disse: "Olha, tu tens uma mediunidade, tu tens um preto velho. Tu vais desenvolver esse lado mediúnico". Eu respondi: "Não, não quero nada disso para mim". Mas aí, no sábado seguinte, deu vontade de ir lá de novo. Lembro que entrei na terreira e depois só lembro de quando terminou a sessão. Eu recebi essa entidade. É uma coisa estranha, inexplicável, porque é uma parte da tua vida em que tu desligas. Recebi o Pai Thomé e estou aí até hoje – relata.
Alfonsin diz que no começo imaginou estar enlouquecendo e procurou atendimento com um psiquiatra, mas por fim assumiu-se como médium. A partir de então, começou a fazer diagnósticos, a receitar chás e a promover cirurgias pelo espaço. A casa onde atende, em Canoas, é uma construção ampla, com o interior pintado de branco e um ar hospitalar. Logo na entrada, há uma sala comprida, repleta de cadeiras enfileiradas e ornamentada por estátuas de diferentes divindades. É nesse salão que se acomodam os "filhos" do preto velho antes das sessões. Ali, os que pretendem fazer uma consulta recebem um formulário no qual devem informar seu mal. Em uma extremidade desse aposento, um telão transmite ao vivo as atividades de uma sala menor, na qual Alfonsin incorpora o Pai Thomé.
Nessa sala, muito iluminada, há um grande altar, tomado por dezenas de imagens. Além de Alfonsin, entram no recinto duas dezenas de médiuns vestidos de branco que, em alguns casos, também incorporam entidades. Essa sala é separada, por uma grade e um cortinado, de uma área onde estão alguns bancos de madeira, nos quais os "filhos" se acomodam depois de passar por um ritual de defumação. Quando a sessão começa, as cortinas são abertas, para que todos possam assistir.
Os médiuns oram, entoam cânticos, tocam tambores, batem palmas, ajoelham-se, reclinam-se no piso, encostam a fronte no chão. No centro da sala, primeiro com as mãos atrás da cabeça, depois atrás das costas e por fim com elas apoiadas sobre uma espécie de cajado curto, os olhos fechados, Alfonsin incorpora o Pai Thomé. Alguns médiuns o amparam, porque ele demonstra dificuldade de manter-se de pé. Tiram-lhe os tênis estreados naquele dia, supostamente porque o preto velho não estava acostumado a eles e os rejeitou.
O médium é então conduzido até uma poltrona branca, junto ao altar. Pálpebras semicerradas, profere a "dita", uma espécie de sermão, que sai em uma voz diferente da utilizada normalmente por Alfonsin. Ninguém fala conforme a prescrição da gramática, mas o linguajar do Pai Thomé é especialmente abundante em erros – mas não aqueles que são usuais. Determinadas palavras são pronunciadas de maneira distinta a cada vez que aparecem no discurso, sem que nunca seja a correta:
– Nego véio sempe fada que a espitualidade azuda voceis a se encontá com aquilo bucam todo dia... Nego véio sempe fada: se voceis pensá antes botá pa foda o que voceis tão sentindo, muita vez voceis evita as coisas poque voceis vão bucá dento da espitualidade o equilíbrio. Se a rezilão azudasse voceis a pensá, se azudasse vocêis a ganhá pataco, meus fido, voceis não tava aqui...
Terminada a "dita", chega o momento das consultas. Enquanto os outros médiuns, em transe, dançam freneticamente, oferecem passes e se movem em uma coreografia espantosa, Inês, mulher de Alfonsin, aproxima-se com uma vasilha tomada pelos formulários preenchidos pelos "filhos". Lê um por um e anota o veredito do Pai Thomé: um chá, uma cirurgia pelo espaço, um conselho. Depois, em uma sala à parte, ela dará a cada um a prescrição.
Em meio à sessão, o portão é aberto e os visitantes começam a ser recebidos na área restrita para ganhar passes dos médiuns. O Pai Thomé também chama algumas pessoas para conversar:
– Maioia dos atendimento que vem cá pocurá o nego véio, eles vêm por saúde. Eu sei o que tu pecisa, fio, em relação a saúde. Eu não tô te perguntando, eu tô te falando porque é vedade, eu sou um anjo de garda. Muitos anos eu tô acá ajudando as pessoa. Eu tabalho em cima do lado espitual das pessoas. Memo que tu não gote de ouvi, eu bô te falá. Isso aqui é a veia do meu apalelo, tá certo? Plocula aqui, vê se tu acha pulso dele. Não vai encontrá. Não vai encontrá pulso dele porque eu deligo aparelo para podê subi nele. Tu não acha batida no pulso. Tu pode mandá qualquer bulo da tela vi aqui, que não vai encontrá batida.
Nesse momento, ele se interrompe, parecendo perturbado, e chama um médium ajudante:
– Ô mô fia. Chama aquela fia lá pa mim. Essa que tá saindo.
A pessoa que ele quer ver é Monique, a jovem que havia realizado todo o ritual da cirurgia pelo espaço no começo daquela semana. Ela se aproxima.
– Fia, te abaixa cá. Cheu te falá uma coisa. Cheu ti mostrá como as pessoa erra, tá, mo fia? Eu fiz o cote dela na segunda-feila, poque ela não pala de saí sangue. Pegunta pá ela o que ela fez terça-feda? O que tu fez terça-feda?
– Esforço – responde Monique, começando a tremer e a derramar lágrimas.
– Passô o dia carregando cassa. Eu opelei ela pá pará de saí sangue. Aí o que acontece? Ela passô fazendo foça o dia intelo, o dia depois da cirurgia. Vai tê de fazê de novo, mia fia. Por causo de quê, mia fia? Não dá pá fica perdendo sangue como tu tá. A cumpida vai marcá contigo, tá?
Instantes depois, ainda com os olhos vermelhos de choro, na sala maior, Monique conta que trabalha em uma asilo de idosos ligado à entidade de Alfonsin e que, no dia seguinte à cirurgia pelo espaço, dedicara-se a carregar caixas de alimentos e pacotes de fraldas.
– Quando ele me chamou, eu já sabia que era por causa disso, porque no fim do dia me disseram que eu não podia ter feito esforço, por causa da cirurgia. Como era cirurgia pelo espaço, como a gente não vê nada, achei que não tinha problema. Mas os sangramentos pioraram – diz Monique.
A jovem diz ter os sangramentos há mais de um ano. Ela busca tratamento apenas com o pai de santo.
– Já fui em três médicos. Parei o acompanhamento médico, porque fiz todos os exames possíveis, de sangue e ginecológicos, e não aparece nada. Só disseram que é problema hormonal, que é normal e que ia passar, mas não passa.
Monique saiu do centro de umbanda com nova cirurgia pelo espaço marcada. No terreiro, é comum encontrar frequentadores que atribuem a esse procedimento curas espetaculares, ainda que elas tenham se submetido em paralelo a todos os gêneros de intervenções médicas tradicionais. A canoense Marisa Pereira, 59 anos, teve um diagnóstico de câncer de mama cinco anos atrás. Fez quimioterapia, radioterapia, cirurgia e usou uma medicação para impedir a recidiva da doença. No entanto, é ao preto velho que credita o sucesso do tratamento:
– Tive o acompanhamento do Pai Thomé desde o começo. Foi muito importante. Ele me aconselhou a continuar com o médico. Fiz quatro cirurgias com ele e uma no Hospital Conceição.
Outro exemplo é Lourenço Bonella, 61 anos, dono de uma indústria de esquadrias de alumínio em Caxias do Sul. Todo sábado, ele viaja duas horas para participar das sessões no terreiro de Canoas, um reconhecimento à ajuda que acredita ter recebido. Bonella procurou o Pai Thomé por causa de um câncer na bexiga. Fez uma cirurgia de sete horas, para remover o órgão afetado e reconstruí-lo a partir de um pedaço do intestino.
– Eu consultei com o Pai Thomé um mês antes e ele disse que tinha cura e que ia acompanhar os médicos na hora da cirurgia. Disseram que era uma cirurgia perigosa. Os médicos se impressionaram com a rapidez da minha recuperação. No quarto dia, já tomei banho e fiz a barba sozinho – conta Bonella.
Entre os relatos de quem procurou alguma forma alternativa de cura, abundam os exemplos de desenganados que obtiveram uma recuperação aparentemente inexplicável. Para o presidente do Cremers, Rogério Wolf de Aguiar, trata-se apenas de "fantasias" ou, no máximo, de "efeito placebo".
– Ouvimos críticas às entidades médicas, como se estivessem fechadas a esse tipo de comprovação. Não é verdade. Que essas pessoas se apresentem, que mostrem seus documentos, mostrem as radiografias, as imagens, o tamanho do tumor bem diagnosticado que desapareceu. Os congressos médicos estão abertos para isso. É o que se chama de científico. Mas onde estão esses resultados? Não estão. São apenas ditos, promessas, depoimentos isolados – desafia.
O certo é que o curandeirismo resiste e viceja, em toda a América Latina, um pouco como herança indígena, outro tanto por tradições introduzidas pelos negros trazidos como escravos, e também em consequência de variadas crenças religiosas.
– Como o acesso ao médico não era fácil na maior parte do país, era natural que houvesse o benzedor, o curandeiro, a pajelança, as garrafadas. Apesar da perseguição, essas práticas continuam muito fortes. Porque é próprio da nossa gente. Está entranhado – diz o cientista social Rodolfo Puttini, professor de sociologia e antropologia da saúde na Faculdade de Medicina de Botucatu (SP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp). – A força do fenômeno tem a ver com a religiosidade, com a crença em um poder divino. As pessoas acreditam na ciência, mas também nessa outra dimensão, porque não podem ser totalmente materialistas. Você faz o tratamento e daí o médico fala: "Não tem cura". O que você faz? Você apela para tudo.
A repressão ao curandeirismo tem como marco, no Brasil, o Código Penal de 1890, promulgado na sequência da Proclamação da República. O artigo 284 prevê detenção de seis meses a dois anos, com possibilidade de multa, a quem prescrever, ministrar ou aplicar substâncias, realizar diagnósticos ou exercer o curandeirismo "usando gestos, palavras ou qualquer outro meio".
A criminalização não acabou com as práticas, apenas tornou-as ocultas. Também mudou as regras do jogo. Segundo Puttini, restaram duas alternativas às modalidades que não eram reconhecidas como científicas. Por um lado, buscar essa chancela – o que aconteceu com a homeopatia, por exemplo. Por outro, situar-se no campo religioso, amparando-se na legislação que assegura a liberdade de fé, como aconteceu com práticas da umbanda e do Santo Daime.
– Da Proclamação da República para cá, a competição passou a ser científica. O médico tornou-se o único autorizado a mexer nos corpos. As outras práticas tiveram de encontrar formas de se acomodar – afirma o professor, que valoriza os saberes dos curandeiros e defende sua incorporação ao SUS.