Baixar uma música ilegalmente, constranger um usuário de opinião divergente em algum fórum de discussão ou usar a senha do colega de trabalho podem parecer atos inofensivos, sem muitas implicações reais, mas isso pode estar prestes a mudar no Brasil. A Câmara dos Deputados deve começar em breve a discutir uma série de propostas e de projetos de lei – que tramitarão com prioridade – capazes de mudar a forma como muitos utilizam a internet.
Mas nem só de pequenos delitos do dia a dia trata o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Crimes Cibernéticos, aprovado no início de maio. Crimes de injúria, calúnia e difamação ou o acesso indevido a informações confidenciais, de órgãos de segurança ou jurídicos, por exemplo, podem passar a ficar sob responsabilidade da Polícia Federal (PF) e ter punições mais severas, céleres e frequentes. Seria o fim da impunidade no mundo virtual.
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Pela proposta, quem descumprir regras deverá receber penas diferentes: acessar o e-mail que alguém deixou aberto pode levar ao pagamento de cesta básica ou prestação de serviço comunitário. Já quem causar prejuízo a pessoas, empresas ou ao poder público adulterando dados pode ser detido por até quatro anos.
Dos seis projetos de lei propostos pelos deputados (conheça todos abaixo), um é especialmente polêmico: o que autoriza a Justiça a determinar o bloqueio de sites e aplicativos dedicados à veiculação de conteúdo considerado ilegal.
De um lado, estão entidades vinculadas à defesa dos direitos autorais e da propriedade intelectual, que veem a proposta como uma maneira de coibir a pirataria na internet. Já o grupo que reúne ativistas na rede argumenta que o texto incita a censura à liberdade de expressão dos usuários.
Para valer, o relatório final do deputado Espiridião Amin (PP-SC) ainda deverá tramitar na Câmara – o cenário, no entanto, já se desenha: vem muita discussão acalorada pela frente.
Bloqueio do whatsapp pode ser proibido
Nos pormenores, o projeto de lei estabelece que juízes poderão determinar o bloqueio do acesso a sites e aplicativos hospedados fora do país, que não tenham representação no Brasil e que sejam dedicados à prática de crimes puníveis com pena mínima de dois anos de reclusão. Esse é considerado um limbo jurídico – serviços na internet hospedados no Brasil ou com representação local já são afetados pelo Marco Civil.
– Com isso, pretendemos punir quadrilhas internacionais que praticam crimes relacionados aos direitos autorais, ao tráfico de drogas e à pedofilia. A internet necessita de uma cobertura legal. Ao não ter uma legislação, o crime se beneficia, e o Judiciário age na desproporcionalidade, como aconteceu nas vezes em que houve o bloqueio do WhatsApp – argumenta o deputado Sandro Alex (PSD-PR), um dos sub-relatores da CPI, que propôs um adendo ao relatório pouco antes de ser votado: não está permitido o bloqueio de sites e aplicativos de mensagens instantâneas.
Em carta-conjunta em apoio ao trabalho da CPI, instituições como a Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA) e o Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav) afirmam que o projeto de lei vai ao encontro das necessidades da economia brasileira, uma vez que garante "o bloqueio de sites cujas atividades se limitem a explorar comercial e ilegalmente o fruto do trabalho intelectual alheio".
As entidades do setor audiovisual também foram beneficiadas por outro projeto apresentado: o que estabelece que os provedores de internet retirem da rede, em até 48 horas, e sem necessidade de nova decisão judicial, imagens, vídeos e quaisquer conteúdos iguais a outros que já tiveram a retirada determinada pela Justiça – outro ponto polêmico do relatório.
– Sem a necessidade de ordem judicial, há o risco de que conteúdos que de fato não são idênticos sejam censurados – critica a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que, ao lado de outros cinco parlamentares, votou contra o relatório.
Acessos restritos e censura
Para Fabro Steibel, diretor-executivo do Intituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro
(ITSrio.org), as propostas da CPI dos Crimes Cibernéticos ferem o princípio que rege a internet, que é o da liberdade, e são uma "amostra grátis do que está por vir": na opinião dele, uma série de bloqueios de páginas e aplicativos, restrições de acesso à internet e censura à liberdade de expressão.
– A internet tem de ser aberta. Você pode criminalizar práticas, conteúdos e autores, mas não a internet. Não há sentido, em uma metáfora, bloquear todos os caminhões dos Correios porque ali no meio há uma carta que tem um crime. A internet é apenas um meio. É desproporcional, do ponto de vista do Marco Civil, comprometer o conjunto de pessoas que fazem o uso de um aplicativo de maneira legal só porque alguns não fazem – defende Steibel.
Membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Demi Getschko argumenta que retirar um site do ar devido à prática de um crime não irá coibir o criminoso – poderia, inclusive, prejudicar a investigação, uma vez que se excluirá um meio para se chegar até o autor do delito.
Além disso, na visão de Getschko, não existe a necessidade de uma lei específica para crimes cibernéticos.
– Crimes são crimes, não importa onde ocorram. Meu medo em relação a essa discussão é de que ela seja pretexto para garantir caminhos curtos para se tirar do ar tudo aquilo o que se considerar violação de propriedade intelectual, o que pode dar margem para muitas interpretações. Não está claramente dito, mas é uma hipótese sobre o que está por trás de todo este processo – discute o membro do CGI.br.
Para o deputado Sandro Alex (PSD-PR), sub-relator da CPI, as críticas em relação aos projetos vêm de grupos que pretendem deixar a internet "longe das regras".
– Só que a rede não pode continuar sendo um território sem lei. E o mundo está caminhando nesse sentido. O que pretendemos aprovar no Brasil não tem nada de parecido com o que ocorre na Coreia do Norte ou na Arábia Saudita, como os opositores têm dito. Mas com o que rege a internet em países europeus, de reconhecida democracia – afirma o deputado.
As seis sugestões
1) Um dos mais polêmicos projetos estabelece a possibilidade de provedores de internet serem obrigados pela Justiça a barrar o acesso a aplicativos e sites que veiculem conteúdo ilegal – desde que sejam hospedados no Exterior ou não tenham representação oficial no Brasil. O texto proíbe o bloqueio de sites e aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.
2) Outro projeto de lei prevê que os provedores de internet retirem da rede, em até 48 horas e sem necessidade de nova decisão judicial, imagens, vídeos e quaisquer conteúdos iguais a outros que já tiveram a retirada determinada pela Justiça. Pelo texto, bastará uma notificação do interessado para que o conteúdo seja retirado.
3) O relatório da CPI inclui também projeto que amplia o crime de invasão de dispositivo informático (computador ou celular), já previsto no Código Penal. Pelo projeto, a invasão de qualquer sistema informatizado, com ou sem vantagem pessoal, passará a ser crime. Atualmente, o Código Penal considera crime invadir dispositivo informático apenas se ficar comprovado o objetivo de obter, adulterar ou destruir dado ou informações sem autorização do dono do dispositivo. Para o deputado Leo de Brito (PT-AC), o projeto penaliza os chamados "hackers do bem", que fazem invasão em sistemas para testar a sua vulnerabilidade.
4) Para subsidiar as atividades da polícia judiciária, os deputados sugerem a criação de uma lei para destinar os recursos de um fundo bilionário voltado atualmente à fiscalização das telecomunicações. A ideia é usar até 10% do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), que advém das taxas de fiscalização cobradas pela Anatel de parte dos valores pagos por empresas que querem operar no Brasil e de multas aplicadas pela agência.
5) Outro dos projetos de lei é a inclusão dos crimes praticados por meio de um computador ou contra um desses aparelhos sobre a esfera de atuação da Polícia Federal. Para deputados, a alteração deve ser feita por não haver norma que defina de qual polícia é a competência para investigar suspeitas de crimes cibernéticos.
6) O relatório sugere que pessoas enquadradas em crimes cibernéticos devam ser punidas com prisão e com o confisco de valores e bens. A medida provocaria a "asfixia econômica de certos crimes", impedindo que o mesmo instrumento fosse novamente utilizado para práticas ilícitas.