Dos 63 anos de vida, o sociólogo Ricardo Antunes dedicou 40 a estudar as condições de trabalho no país e no mundo. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1986, uma vez por ano ensina na Universidade de Veneza, na Itália.
– Sei que faço parte de uma camada pequeníssima da população que faz um trabalho em que efetivamente há sentido, mas ele não é dos sonhos – diz Antunes em entrevista por telefone. – Trabalho hoje três ou quatro vezes mais do que nos anos 1970. Chego em casa, já abro o computador e sigo até as duas da manhã. Professores universitários adoecem cada vez mais, têm depressão, e a incidência de câncer aumentou. Temos metas de produção e publicação: se um é um pouco mais improdutivo, vira exemplo do que não ser. Você pode perguntar por que ainda não me aposentei e eu te responderia “porque gosto”. Há uma dialética do trabalho que é espetacular. O trabalho é uma estrutura de sofrimento. É, ao mesmo tempo, emancipação, busca de felicidade e sofrimento.
Confira a entrevista completa abaixo.
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Como o senhor vê empresas como Google, Airbnb, Uber e Spotify, que adotam novos formatos e evitam as rotinas formais, tornando-se o sonho de trabalho de muita gente?
Uma sociedade infernal tem de ter alguns exemplos paradisíacos porque, sem isso, há o desespero. É natural que exista contrato de horário flexível. A pessoa pode passar muitas horas esperando até ser chamada para trabalhar. Ela pode ser da área de saúde, como cuidador de crianças ou de idosos, ou um médico, mas pode ser da área de informática também. Embora passe mais tempo esperando pelo chamado, essa pessoa só vai receber pela hora trabalhada. Essa é uma realidade dura: a ideia de informalidade é também a da disponibilidade perpétua. Muitos trabalhadores qualificados sofrem. Esse contrato faz com que caminhemos para a sociedade da terceirização total. E isso é nefasto. Hoje, no Brasil, há ao menos 12 milhões de pessoas trabalhando como terceirizados. Claro que há freelancers com salários altíssimos, mas a maioria é quem faz a limpeza dos nossos locais de trabalho. A maioria vive a "uberização do trabalho" e trabalha mais do que quem é regulamentado. É o outro lado do trabalho dos sonhos, é o trabalho dos infernos. O coworking, o trabalho compartilhado, só funciona para quem, como diz (Pierre) Bourdieu, dispõe de capital cultural. Outra questão é o ideal do empreendedorismo. Alguns se sobressaem, mas a maioria se torna prisioneira de bancos. Mas o que seria de uma sociedade sem um sonho, sem o fetiche do sucesso?
O senhor disse que trabalha muitas vezes de casa. Existe esse "sonho" de não ter que, necessariamente, ir ao trabalho.
Há muita gente que trabalha em casa desprovida de direitos, sem cobertura salarial nem seguro saúde. Predomina hoje o trabalho dos sonhos ou o dos infernos, com metas, medo de perder o emprego, depressão? O Google, quando recolhe seus jovens dinâmicos para levar até sua unidade produtiva, na Califórnia, oferece um ônibus especial, com uma confortável poltrona e um computador aberto. Eles já vão trabalhando para ganhar tempo. Esse tempo de trabalho é pago? Não. Nós nos formamos nos anos 1970 sabendo que poderíamos escolher três ou quatro empregos durante toda a vida. O Banco do Brasil era o trabalho dos sonhos. Hoje, ninguém que trabalha lá sonha com isso para os filhos. Os jovens têm outra escola. Começa que essa juventude é formada em um mundo virtual em que o limite do real e do irreal é tênue. O jovem começa a trabalhar em SP, depois vai para Bangladesh, para Londres, perde o emprego e se muda para Veneza, onde vai trabalhar numa pizzaria. Aí, ele acha que o custo de vida é alto e se muda para Amsterdã, onde recebe convite para trabalhar na China. É preciso compreender o caráter heterogêneo desses movimentos em que prevalece a aparência do regozijo e do sonho. Mas, infelizmente, às vezes o sonho derrete e o tombo é alto. Quantos pilotos brasileiros de aeronave estão na China e nos Emirados Árabes? Aqui não têm trabalho, e lá ganham três vezes mais, mas veem cada vez menos a família.