Publicada na edição de 10 de janeiro de Zero Hora, entrevista com a obstetra paraibana Melania Amorim mobilizou entidades médicas do Rio Grande do Sul. Melania, uma defensora do parto humanizado, criticou o alto índice de cesáreas no Brasil e ainda citou números sobre a violência obstétrica. Por e-mail, a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs) e a Federaçao Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) contestam alguns pontos levantados pela especialista.
- O que a gente quis ponderar é que tem muitas coisas que foram ditas olhando pelo lado apaixonado, sem as considerações científicas sobre o assunto. Existe hoje uma corrente um pouco apaixonada pelo parto mais simplificado, dito humanizado - explica a presidente da Sogirgs, Mirela Foresti Jiménez.
Na entrevista, Melania cita a Holanda como exemplo na questão dos partos domiciliares. Ela afirma que o índice desse tipo de procedimento no país é de 20% e de que houve comprovação de que ele seria tão seguro quanto o realizado em hospitais. Mirela rebate os argumentos, citando que, no país europeu - que só efetuava partos hospitalares em casos de gravidez de alto risco ou por vontade da mulher -, foram analisados mais de 37 mil nascimentos de gestantes de baixo risco que tiveram os bebês em casa com auxílio de enfermeiras. Eles foram comparados com os partos de alto risco realizados em hospitais por obstetras e mostraram que, nos partos em casa, o risco de mortalidade perinatal aumentou em 3,6 vezes e a chance de o bebê ser internado em uma UTI neonatal também crescia 2,6 vezes.
- Fizeram o estudo com o objetivo de mostrar que o atendimento era bom. Para surpresa deles, o levantamento mostrou que o parto domiciliar tem uma mortalidade do recém-nascido maior do que no hospitalar. Viram que naquelas pacientes que estavam dentro do hospital, com risco muito maior de o recém-nascido ter problemas, tiveram resultado melhor do que aquelas de baixo risco que tiveram os bebês em casa. A Holanda era modelo de parto domiciliar no mundo, e eles próprios viram que não servem de modelo, por que tu tens de duas a três vezes mais crianças morrendo do que no hospital. Isso é assustador - observa Mirela.
Sobre o índice de cesarianas feitas no Brasil, Melania disse que " o que se vê é um abuso de cesáreas sob pretextos fúteis". Para a Sogirgs, esse índice ainda está acima do esperado e, por isso, estão medidas para reduzi-lo estão sendo discutidas e implantadas. Entretanto, a entidade refuta a afirmação de Melania que diz que os obstetras seriam os causadores desse aumento. "Consideramos, no entanto, que a análise focada apenas no obstetra como o causador dos elevados índices de cesárea no Brasil é superficial, simplista e precipitada", diz a carta de contestação. A Associação levanta uma série de aspectos que contribuem para esse crescimento, em especial na saúde privada. Um deles, é a ausência de equipes médicas completas e permanentes composta por obstetras, pediatras e/ou neonatologistas e anestesistas.
- Se a gestante chega a um hospital privado da Capital em trabalho de parto ela não tem como ser atendida sem levar o seu médico, o seu pediatra e o seu anestesista. Para cada paciente que chega no hospital, ela tem que levar toda a estrutura. Além disso, com frequência, as maternidades estão lotadas - diz Mirela, justificando a preferência das gestantes pela cesárea.
VEJA OUTROS PONTOS LEVANTADOS
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
O que diz Melania
"Inclui-se, neste conceito, não só as agressões físicas ou os maus-tratos verbais. Na minha visão, procedimentos desnecessários e prejudiciais, quando usados rotineiramente, também são violência obstétrica."
O que diz a Sogirgs
"O termo criado a partir de uma lei da Venezuela é muito mal empregado, pois coloca o foco da violência no obstetra e nos procedimentos médicos. Por óbvio e pela própria natureza profissional (que visa à assistência integral à saúde do binômio mãe e bebê), repudiamos atitudes violentas contra as mulher."
EPISIOTOMIA
O que diz Melania
"Em 1983, por exemplo, já havia uma revisão mostrando que não havia evidências de que a episiotomia fosse necessária. Pelo contrário, comprovava que era desnecessária e tinha efeitos deletérios."
O que diz a Sogrigs
"Grandes estudos realizados em países nórdicos demonstraram que taxas muito baixas de episiotomia estão associados a um aumento de ruptura de esfíncter e incontinência fecal, evento que altera a qualidade de vida de forma muito marcante."
Confira a carta da Associação Gaúcha de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs) em relação a alguns aspectos da assistência obstétrica na íntegra:
Sobre a episiotomia
Grandes estudos realizados em países nórdicos demonstraram que taxas muito baixas de episiotomia estão associados a um aumento de ruptura de esfíncter e incontinência fecal, evento que altera a qualidade de vida de forma muito marcante. Em 2004, na Finlândia, a taxa de episiotomia era de 32%, com taxa de ruptura perineal de 0,7%, enquanto que, na Noruega, a taxa de episiotomia era mais baixa (17,8%) e as lacerações de esfíncter muito maiores (4,2%). Quando elevaram os seus índices de episiotomia para 19,1%, conseguiram reduzir em 48% a laceração de esfíncter. Dados publicados na revista científica Acta Obstetricia et Gynecologica Scandinavica, Nordic Federation of Societies of Obstetrics and Gynecology. Portanto, consideramos que a episiotomia é uma intervenção que deve ser indicada somente quando é necessária, no entanto, taxas muito baixas não são adequadas e estão associadas à ruptura de esfíncter e incontinência fecal.
Sobre o parto domiciliar
Defendemos o parto com segurança para a saúde da gestante e de seu bebê, realizado dentro do hospital, com equipe de saúde completa, com obstetras, neonatologistas/pediatras, anestesistas, enfermeiras, técnicas de enfermagem e demais profissionais.
A defesa do parto hospitalar tem como base os resultados de estudos científicos robustos realizados na Inglaterra, na Holanda e nos Estados Unidos. Nestes países onde já existe há muitos anos estrutura preparada, logística de transporte e comunicação com os hospitais e possuem equipes treinadas, fazendo parte da assistência ao trabalho de parto, os os partos realizados fora do hospital tem resultados perinatais muito piores. São descritos a seguir os principais estudos:
Annemieker Evers e colaboradores (BMJ, 2010), com o intuito de demonstrar a eficiência do sistema de saúde na Holanda, avaliaram 37.735 nascimentos de gestantes de baixo risco que tiveram parto domiciliar ou em Centro de Parto Normal realizado por enfermeiras e os compararam com os nascimentos de gestações de alto risco realizados por obstetras no hospital. Os recém-nascidos de partos de baixo risco realizados por enfermeiras tiveram mais do que o dobro da mortalidade perinatal relacionada ao nascimento. As parturientes que foram referidas aos obstetras pelas enfermeiras tiveram 3,6 vezes mais risco de mortalidade perinatal e 2,6 vezes mais chance de ter seu filho internado em UTI neonatal.
Já o estudo Inglês (Fonte: Birthplace in England Collaborative Group. BMJ 2011; 343 doi: 10.1136/bmj.d7.400. http://www.bmj.com/highwire/filestream/545014/field highwire article pdf/0.pdf) demonstrou que a mortalidade neonatal foi 1,75 vezes maior nas nulíparas que tiveram partos de baixíssimo risco realizados no domicílio ou em casas de parto normal, quando comparados com os partos hospitalares realizados por médico.
Amos Grünebaum e colaboradores (Am J Obstet Gynecol, 2014) estudando 13.936.071 nascimentos entre 2006 e 2009 nos EUA , com dados do CDC, avaliaram dois desfechos neonatais: Apgar zero no 5º minuto (nota dada ao recém-nascido, que varia de 0 a 10) e dano neurológico de 3 tipos de locais de parto: parto feito por enfermeiras no domicílio, em Centros de Parto Normal e em hospitais. A chance do recém-nascido ter Apgar zero no 5º minuto foi 3,5 vezes maior nos Centros de Parto Normal, 10,5 vezes maior no domicílio, quando comparados com o parto hospitalar. A chance do recém- nascido ter dano neurológico foi 2 vezes maior nos Centros de Parto Normal, 4 vezes maior no domicílio, quando comparados com o parto hospitalar. Demonstrando que o local do nascimento é um fator determinante nos resultados para os recém-nascidos.
O mais recente estudo foi realizado nos EUA, com 79.727 nascimentos (The New England Journal of Medicine, dezembro de 2015). A conclusão dos autores seguiu na mesma linha dos anteriores: a mortalidade perinatal é maior nos partos planejados fora do hospital, quando comparada com os partos hospitalares (com risco de 2,43 vezes maior). O risco de convulsões neonatais também foi maior no parto domiciliar.
Na mesma linha, a Academia Americana de Pediatria e o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia afirmam que o hospital e as Maternidades são os locais mais seguros para o nascimento nos EUA (www.pediatrics.org/cgi/doi/10.1542/peds.2013-0575, PEDIATRICS - The American Academy of Pediatrics, 2013 - COMMITTEE ON FETUS AND NEWBORN PLANNED HOME BIRTH).
O parto normal, sem complicações é um evento simples. No entanto, a classificação de baixo risco ou de risco habitual é dinâmica e esta definição só se completa depois do nascimento, com o bebê já no colo da mãe. O que inicialmente parecia de baixo risco, pode se transformar em alto risco em poucos minutos e as ações necessárias para preservar a vida da mãe e do bebê precisam ser rápidas e tempo perdido com o deslocamento para o hospital pode ser crucial e determinar resultados adversos para mãe e recém-nascido.
À luz dessas consequências e dos resultados destes grandes estudos, fica evidente que o parto realizado em ambiente hospitalar é capaz de assegurar as melhores chances de cuidado à vida e à saúde da parturiente e do nascituro (e, portanto, é mais seguro).
Sobre as taxas de cesárea
As taxas elevadas de cesárea, em especial na saúde suplementar, não podem ser defendidas. Medidas para redução das taxas de cesariana têm sido discutidas e implantadas. Consideramos, no entanto, que a análise focada apenas no obstetra como o causador dos elevados índices de cesárea no Brasil é superficial, simplista e precipitada. É preciso considerar que:
1. As taxas recomendadas como referência tem se modificado. A Organização Mundial de Saúde (OMS), baseada em estudos muito antigos, recomendava que as taxas de cesárea não ultrapassassem os 10-15%. No entanto, em estudo recente, realizado pela própria OMS e publicado em revista científica de alta qualidade (JAMA. 2015; 314 (21): 2263-2270), modifica esta recomendação. O estudo analisou a relação entre as taxas de cesárea e a mortalidade materna e neonatal no ano de 2012 em 172 dos 194 (88,7%) países membros da OMS, o que representa 97,6% de todos os nascimentos do mundo. A conclusão dos autores do estudo é de que taxas acima de 19% estão associadas a menores taxas de mortalidade materna e neonatal e que o alvo previamente sugerido pela OMS era muito baixo.
2. No Brasil, nas regiões mais pobres, com menos infraestrutura, as taxas de cesárea são mais baixas, no entanto, a mortalidade materna e neonatal é muito mais elevada.
3. Os índices de cesárea crescem no mundo todo e concorrem para isso inúmeros fatores, tais como: mulheres engravidando com mais idade, com mais doenças associadas, aumento da obesidade e do diabetes na gestação.
4. A menor estatura das mulheres latinas difere das mulheres nórdicas, e isto contribui para maiores índices de cesárea.
5. As pacientes têm direito inquestionável de participar da escolha da via de parto.
6. Na saúde suplementar e privada, que tem os maiores índices de cesárea, existe falta de oferta suficiente de leitos em maternidades credenciadas, falta de equipe médica completa e permanente de obstetras, pediatras e/ou neonatologistas e anestesistas, para atender a gestante em trabalho de parto, em regime de plantão nas 24 horas do dia.
7. No atendimento pelo SUS ,não existe anestesista em número suficiente para realizar a analgesia do trabalho de parto em todas as pacientes que tenham indicação, tornando o parto uma experiência de dor e insatisfação e desejo de não repeti-la. É muito comum ouvir relatos destas experiências negativas e a motivação para fazer um plano de saúde para poder "escolher a cesariana".
Modificar esta realidade em seus vários aspectos é de suma importância para a redução das taxas de cesariana no Brasil.
Sobre a violência obstétrica
O termo criado a partir de uma lei da Venezuela é muito mal-empregado, pois coloca o foco da violência no obstetra e nos procedimentos médicos. Por óbvio e pela própria natureza profissional (que visa à assistência integral à saúde do binômio mãe e bebê), repudiamos atitudes violentas contra as mulheres. É consenso que atitudes violentas contra a gestante devem ser combatidas por todos, nas mais diversas instâncias, seja ela individual ou por falta de políticas públicas; nos hospitais, maternidades e serviços de neonatologia sucateados; quando há falta de leitos obstétricos, falta de funcionários, médicos para o exercício da assistência de qualidade e do tratamento humanizado. Consideramos desumano e violento passar as horas de trabalho de parto com dor e sem poder contar com analgesia realizada por anestesista, com toda a segurança.