Pergunte ao Google: "Como falar com sotaque gaúcho?". Um dos primeiros resultados sugeridos pelo buscador, provavelmente, será um site que oferece um breve tutorial com dicas específicas para falar como um sulista. Clique. O primeiro item é: "Use o tu na gramática, gaúchos não falam você".
Há algumas semanas, um post no Facebook do jornalista André Benedetti, 39 anos, causou burburinho na rede social sobre o uso do pronome da segunda pessoa no sul do país. O morador de Caxias do Sul escreveu que seus filhos e as crianças com quem ele convive têm o hábito de usar o "você". Não demorou para que outras pessoas se identificassem com a situação. Estava lançada a polêmica: estaria o gaúcho abrindo mão do "tu"?
Benedetti conta que, quando os dois filhos, Guilherme, cinco anos, e Felipe, três, estavam aprendendo a falar, usava o pronome "você" ao se dirigir aos meninos por ser "mais carinhoso", soar mais leve e para fugir dos erros gramaticais - no dia a dia, pecamos ao utilizar o "tu" com o verbo na terceira pessoa do singular.
- Mas sempre fui um defensor de falar "tu", achava bonito manter, é parte da nossa identidade - ressalta Benedetti.
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Ele e a mulher admitem que já aderiram ao pronome da terceira pessoa para falar com os guris. "Culpa" de um mundo cada vez mais conectado e comunicativo.
- Acho que as pessoas estão escrevendo muito mais, todo mundo passa o dia digitando. O perfeccionismo e o politicamente correto da escrita estão levando as pessoas a falarem "você" para não conjugarem o verbo de maneira errada - opina.
O primeiro comentário na publicação de Benedetti foi o da analista de marketing Renata Gravina, 43 anos: "Esta semana, ainda brinquei com o Pedro (seu filho de 13 anos): que você o quê, guri, fala direito, que tu é gaúcho".
- Pelo WhatsApp e nas redes sociais, ele só fala "você", e até abrevia para "vc" às vezes - diz.
O debate que começou no Facebook foi parar em um grupo de WhatsApp de 15 mães que moram na Capital. A médica Beatriz Luzardo Cardoso, 44 anos, enviou para as amigas uma mensagem de áudio contando a experiência que teve com a filha Maitê, quatro anos. Natural de Alegrete, Beatriz ouvia a filha, que então tinha dois anos e meio, usar o "você" em casa. Até a família, na Fronteira, perguntou o porquê de a menina, que ainda aprendia a falar, usar o pronome da terceira pessoa com os parentes.
- Achamos bonitinho primeiro, mas logo começaram a dizer: "Vocês estão ensinando essa criança errado?"- recorda.
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Poderia ser a Netflix, que Maitê já sabia dominar para assistir aos desenhos preferidos? Ou uma colega de aula que veio de São Paulo? Seria uma orientação das professoras de Educação Infantil para falar com as crianças? A mãe foi até a escola perguntar.
- A professora daquele ano confirmou que muitas vezes usava o "você" para não correr o risco de apresentar a linguagem de uma forma errada para as crianças. É pernóstico conjugar a segunda pessoa, soa forçado, então, a gente acaba falando errado no dia a dia. O "você" não é o habitual aqui do Sul, mas é mais fácil de conjugar - aponta Beatriz.
- Parece que está se perdendo a identidade do gaúcho quando ouvimos, né? - acrescenta o pai, o servidor público Rogerio Vargas, 47 anos.
Hoje mais falante, com um vocabulário maior, Maitê já não destoa da família
alegretense.
- Ela usa o "tu"- informa a mãe, bem-humorada.
Influências e tradição
Na escola de Educação Infantil do bairro Menino Deus que Maitê frequenta, a pedagoga Larissa Vargas, 25 anos, diz que não há orientação específica para os professores sobre o uso de pronomes como o "tu" e o "você" em sala de aula. Para os alunos de até seis anos, que ainda não estão na fase de alfabetização, a prioridade é ensiná-los como se comunicar. A conjugação dos verbos merece cuidado das professoras, mas nada que imponha ou desincentive o uso da linguagem coloquial.
- Não corrigimos quando a criança usa o "você" ou o "tu". Cada família tem o próprio jeito de educar os filhos, então, não há regra - completa Larissa, que aponta os desenhos animados, dublados no sudeste do Brasil, como uma possível influência. - Os pais geralmente falam "tu". O "você" vem mais da TV.
Há escolas que fazem questão de reforçar a tradição. No Colégio Anchieta, os livros dos anos iniciais são escritos com a conjugação do verbo na segunda pessoa.
- Para poder atender a essas questões características da linguagem, do 1º ao 4º ano, o material produzido aqui na escola usa o "tu", para manter a característica da nossa cultura - explica Doris Trentini, coordenadora-geral do serviço de pedagogia.
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Por lá, a professora diz que ainda não percebeu um uso significativo do "você" por parte dos alunos.
Ana Rangel, coordenadora do curso de Pedagogia da UniRitter, notou a diferença em casa e recorda que, há 15 anos, era mais difícil ouvir o "você" no Rio Grande do Sul. Ela acredita que o Estado está mais multicultural, o que pode contribuir para as mudanças na linguagem.
- A criança vai aprender as variações da língua com pessoas que são importantes para ela e com as quais convive no dia a dia, como professores e família, mas é especialmente influenciada pelos colegas - completa.
Sinais de mudança
O "tu" chegou com os portugueses, é o pronome mais conservador e antigo da língua. O "você" vem do pronome de tratamento Vossa Mercê, que, com o passar do tempo e o uso por diferentes grupos, transformou-se em "vosmecê" e, consequentemente, "você" - em algumas regiões, é crescente o uso do "cê". Essa transformação é chamada de erosão fonética. Algumas partes do país começaram a usar de maneira mais rápida
o "você", outras, como o Sul, mantiveram o "tu".
- O que mais acontece em qualquer língua é a criação de formas distintas de gramática. As regiões têm seus limites geográficos e elementos que influenciam a linguagem, como imigração e contatos linguísticos com outros povos. É difícil precisar o que determina o uso de uma forma e outra em cada uma - diz o professor e pesquisador em linguística da UFRGS Marcos Goldnadel.
A pergunta que começou no Facebook pode apontar uma mudança mais ampla da linguagem, um fenômeno que acontece com o passar do tempo e independe da vontade de manter as tradições. Isso quer dizer: não só o "tu", mas outras expressões irão se adaptar ao novos tempos.
- Um dos critérios usados especialmente em estudos da sociolinguística para identificar se há uma mudança efetiva na língua é fazer uma comparação a respeito do modo como fala cada geração. Se os mais velhos usam uma forma e os mais novos começam a implementar uma forma diferente, é um bom sinal de mudança linguística - acrescenta Goldnadel.
Forma mais respeitosa
Pesquisadores da área de linguística como Gabriel Othero, do Instituto de Letras da UFRGS, desmitificam que aqui no Rio Grande do Sul o "tu" é estritamente soberano. Desde a década de 1970, o "você" era pouco usado na região, mas, gradativamente, o processo que começou no Paraná, avançou por Santa Catarina e já chegou por aqui pode, no futuro, mudar a ideia de que gaúcho só usa o "tu". Sim, o "você" está cada vez mais comum, principalmente na Capital. Essas transformações na linguagem são documentadas pelo grupo de pesquisa que reúne quatro universidades do sul do país, o Variação Linguística na Região Sul do Brasil (Varsul).
- Em 2015, já vemos crianças usando mais o você do que a geração que nasceu na década de 1970 e 80, mas o "tu" ainda predomina - esclarece Othero, que concorda com a pedagoga Larissa Vargas e a mãe de Maitê, Beatriz: além da facilidade na conjugação verbal, pesa a favor do "você" a maciça presença de produções de Rio e São Paulo na programação de TV.
- Para tratar uma pessoa de maneira mais respeitosa, é comum usar o você. O "tu" ficou para o dia a dia - completa.
Alternância de pronomes
Rosemari Lorenz Martins, professora do mestrado profissional em Letras da Feevale, coordenou uma pesquisa tendo por base textos produzidos por alunos da universidade. Detectou-se a alternância entre o uso dos dois pronomes - no mesmo texto, aparecem "você" e "contigo", por exemplo. Mas ela faz uma ponderação:
- Linguisticamente, falar "tu veio" não está errado. Escrever assim em um texto acadêmico já não é adequado.
Cláudio Moreno, professor de Língua Portuguesa:
"O "tu" gaúcho está agonizante, mantido só à base de aparelhos. A dificuldade em conjugar a 2ª pessoa do singular é sintoma, e não causa. Na verdade, está havendo uma "concertação" nacional: usamos o TU e o VOCÊ com o verbo na terceira do singular (os gaúchos aqui fazem feio), e os pronomes TE, TI, TEU e TUA para qualquer interlocutor, independentemente de o chamarmos de TU ou VOCÊ ("Você precisa entender que eu TE amo", "Se você não se cuidar, a aids vai TE pegar"- aqui,
o resto do Brasil é que faz feio)."