Em uma tarde ensolarada da semana passada, um grupo de senhores entre 35 e 70 anos se aglomera em um depósito de uma casa de leilões na zona sul da Capital. Ajeitam-se em cadeiras de plástico ou sofás surrados, mas a maior parte prefere se escorar nas máquinas industriais, reboques, escadas metálicas e refrigeradores que cercam aquele miolo ajeitado como salão.
Leilões de arte com preço recorde são retrato da nova relação entre a arte e o capitalismo
Em mãos, muitos trazem a colinha: a lista dos bens que serão negociados, sua avaliação e a situação na Justiça. São imóveis, automóveis, móveis, sucatas, eletrodomésticos e até roupas etiquetadas que serão leiloados para pagar dívidas dos antigos proprietários.
Os participantes ouvem as regras com atenção: o lance tem de ser pago à vista e com cheque próprio. Além do preço de arremate, há um adicional - geralmente de 10% - como comissão à leiloeira. Muitos são veteranos e sabem que, embora o depósito ocorra no dia seguinte, só vão receber a encomenda daqui a pelo menos dois meses, período para que o juiz homologue a oferta e autorize a transferência.
Em geral, os bens saem por preços bem abaixo do mercado. Em contrapartida, quem dá o lance mais alto assume o risco de levar um apartamento no qual nunca entrou, ou um automóvel que jamais testou. Não há garantias de qualidade.
- Existe um risco. Os lances têm de ser planejados, levando em conta valor de mercado, uma eventual necessidade de conserto e qual limite em uma disputa com outro participante - aponta Rafael Gomes Pietoso, um dos diretores da Pietoso Leilões.
Oportunidades escondidas no mundo dos leilões
O primeiro imóvel em oferta é um prédio comercial na Avenida Ceará, zona norte da Capital. Avaliado por R$ 500 mil, acabou vendido por R$ 750 mil para um representante de empreiteira, após rápida contenda que envolveu outras cinco pessoas.
- Esse fez um baita negócio. Só o terreno já vale isso - comenta um dos participantes.
O segundo imóvel vai parar nas mãos de um aposentado de 67 anos, Assis Piccini. É um apartamento de dois quartos, com garagem, no bairro Jardim São Pedro, fruto de dívida trabalhista do proprietário com a empregada doméstica. Piccini pagou R$ 180 mil, metade do valor de avaliação.
- Se não tiver de fazer muitas reformas, foi um bom negócio - comemora.
Os bons arrematadores saem de casa sabendo o que vão disputar e guarnecidos de informações específicas do bem: quais as pendências financeiras, se estão envolvidos em outros processos que possam atrasar a transferência e se todas as negativas estão em dia. Exibindo um breve dossiê sobre um Fiat Uno 2002, recém arrematado por R$ 500, o aposentado Jurany Cabral detalha:
- Esse automóvel tem mais de R$ 1,3 mil em multas e atraso de IPVA. Se eu chego desprevenido, pago um valor mais alto e não tenho lucro na revenda.
Assim como Cabral, a maioria dos participantes revende os bens em briques ou galpões na periferia da Capital. Poucos compram para uso próprio. Ele mesmo reforma e repassa carros ou negocia as peças em separado. Participa de leilões desde 1982.
Um bom lucro ronda os 30%, dizem os mais experientes. Por isso, a oferta certeira é friamente calculada: considera comissão, eventuais consertos e o tempo que o dinheiro ficará parado e até que o bem seja transferido. Quando a disputa é por imóvel, é um tiro no escuro: como são objetos de litígio, dificilmente os interessados têm autorização para conhecer por dentro. A maioria só vê a fachada.
- Você nunca sabe o que vai encontrar por dentro - resume o advogado Rubem Konig, 37 anos.
Há oito anos frequentando leilões, Konig diz que teve poucas surpresas ruins nas dezenas de negócios fechados. Uma má lembrança é de um terreno no Litoral arrematado por R$ 20 mil em 2011, mas que acabou embargado na Justiça. Ele ainda espera liberação.
- É um tipo de situação que não é regra, mas acontece. Tem de ter sangue frio - resume Konig.
O comprador de carros
"Tem de ter a manha: saber direitinho a procedência e não gastar em algo que vai dar muita manutenção", diz Jurany Cabral, Aposentado que pagou R$ 500 por um Uno (foto) e depois brigou lance a lance por uma Zafira
Uma das joias do leilão na semana passada era um Chevrolet Zafira 2002/2003, motor 2.0, câmbio automático, avaliado em R$ 19 mil - uma penhora de empresário condenado a ressarcir um de seus empregados. No pátio, atrai a atenção dos participantes, que observam o estofado e o motor e testam a suspensão apoiando o pé na base da porta. O glamour, entretanto, é insuficiente para render uma oferta à altura da majestosa caminhonete.
- Pago cinco mil! - grita um dos participantes.
Contrariada, a leiloeira argumenta que o valor é muito baixo e provoca os demais a participarem. Silêncio.
A oferta é interrompida e retornará ao final do leilão. Os participantes confabulam entre si: com uma ou outra reforminha, dá para ganhar um bom dinheiro colocando o carrão no mercado.
Quando a Zafira volta a negócio, dois participantes iniciam disputa. Um oferece R$ 7 mil, o outro, R$ 7,5 mil. Nesse ritmo, chegam a R$ 9 mil. Um desiste. O lance final é de Jurany Cabral. A leiloeira dá uma martelada na base de madeira: "dou-lhe uma". Nada. No "dou-lhe duas", Cabral já é todo sorriso. Quando ergue o martelo para a terceira e última pancada, ergue-se uma mão em meio à multidão.
- Nove mil e cem - diz um senhor que, até então, observava tudo calado.
O choque de Cabral é notório. Ele, que já sentia o cheiro do lucro, olha para o desafiante, caminha em círculos, sorri ironicamente. Aumenta a oferta em R$ 100, fala alguma gracinha para o outro. E o rival aumenta em mais R$ 100, respondendo com uma provocação qualquer. Um banca a oferta do outro até um ponto em que muitos arrematadores riem entre si, concordando que a racionalidade foi deixada de lado.
O desafiante finalmente abandona a briga. Jurany fica com a Zafira por R$ 12,5 mil. Pagou bem mais do que se propunha. Mas, mesmo que não ganhe um real de lucro (o que é improvável), sente que saiu por cima.
- Mostrei para ele quem tem bala na agulha - diz, apontando o queixo para o rival e dando uma piscada zombeteira para a reportagem.
A regente dos arremates
"É preciso saber captar a tensão. Se o preço é alto demais, incompatível com o bem, questiono se o comprador está ciente do negócio. Mas também sou dura quando vejo que estão desprezando um bem com lances muito baixos", diz Carmen Gomes Pietoso, Leiloeira oficial da Pietoso Leilões, há 26 anos nesse ofício.
A dinâmica de um leilão pode mudar em poucos segundos. Uma disputa morna está sempre na iminência de virar briga de vaidade. Um apartamento sem graça é capaz de chegar a um valor exagerado. Do alto de sua tribuna, a leiloeira Carmen Gomes Pietoso rege o ritmo dos lances e manda alertas quando começam a escapar da realidade - ou quando os compradores parecem cegos a uma boa oferta.
Às vezes, há um apego emocional. O proprietário ou um familiar vai ao leilão tentar retomar um bem e sai aos prantos quando não consegue. Lágrimas não são raras. Há dois anos, uma mulher disputava uma segunda garagem em seu condomínio. Entre um lance e outro, distraiu-se em conversa com um parente e perdeu a chance.
- Ela ficou desesperada. No dia seguinte, me ligou dizendo que havia guardado dinheiro havia um ano para comprar o imóvel. Situação difícil, mas não havia nada que eu pudesse fazer - lembra Carmen, há 26 anos no ofício.
Há os nostálgicos. Um senhor de idade avançada passou a frequentar a casa há alguns meses. Sentava em um canto, observava tudo atentamente, vibrava como em um Gre-Nal.
- Era o antigo dono de uma transportadora vendida à concorrente. Ele vinha aos leilões só para reviver o clima de negócios - diz Rafael Gomes Pietoso, diretor da Pietoso.