Mãe adotiva de uma menina, a estilista Vana Lopes ainda tinha o desejo de engravidar e, em 1993, procurou o mais renomado especialista em reprodução assistida no país. Estuprada sob o efeito de anestesia, dentro da clínica, por Roger Abdelmassih, Vana sofreu sérios problemas de saúde decorrentes da ação de uma bactéria contraída na relação sexual forçada. Meses depois, o casamento acabou quando relatou o episódio ao marido.
Vítimas de crimes sexuais podem adiar denúncias devido à vergonha e ao medo de reviver o trauma
O trauma, o sofrimento de mais de 20 anos e o desejo de ver o agressor de dezenas de mulheres punido - o médico hoje está preso, após ter sido capturado no ano passado, no Paraguai - são narrados em Bem-vindo ao Inferno - A História de Vana Lopes, a Vítima que Caçou o Médico Estuprador Roger Abdelmassih (Matrix Editora, 424 páginas, R$ 49,90), livro lançado recentemente pelos jornalistas Cláudio Tognolli e Malu Magalhães.
- Fiquei até 2009 achando que era uma vítima sozinha. Não existe estuprador de uma vítima só. Ele é serial - afirma a paulistana Vana, 55 anos.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Como você lida com a recordação da violência até hoje?
Vana Lopes - O que ocorreu comigo anos a fio foram pesadelos, eles se impregnaram em mim, em cheiros, enjoos e até visualmente, quando via qualquer médico. A gravidade, inclusive reforçada na sentença da juíza, se deve ao fato de eu e as demais termos sido violentadas em nosso momento sagrado e ao vínculo de confiança que tivemos com quem deveria nos tratar. Não me sentia segura com médico algum. Fiquei com o trauma do jaleco branco.
Por que tantas mulheres não o denunciaram na época em que a violência ocorreu?
Vana - Sentiram vergonha. Foi um momento muito delicado. Ele não estuprou só a mulher, ele estuprou o casal. O marido também foi violentado, no psicológico. A mulher precisava que o marido concordasse com a decisão de se expor e procurar a polícia. Além da vergonha, era uma denúncia que não cabia só à mulher fazer. Ele violentou o núcleo familiar. Um casal que procura uma clínica se ama. O Roger violentou o amor. Muitos casais se separaram em decorrência disso, pela fragilidade do momento, pela culpa.
A notoriedade do médico contribuiu para silenciar as vítimas?
Vana - Elas se sentiram inibidas. O fato de ele ser famoso te expõe. Até hoje tem gente que o defende. Ele levou um caminhão de testemunhas, mas eram testemunhas da pessoa dele, não do ato. Não há provas do crime de estupro. Essas pessoas não estavam lá no ato. Ele conseguiu defensores famosos, que considero vítimas também.
Mas a fama dele não a impediu de reagir rapidamente.
Vana - Não. Denunciei-o à polícia no dia da violência. O fato de ele ser conhecido não me fez vê-lo como um "dourado" estuprador, porém sua influência financeira e suas ligações afetivas com poderosos, aos quais deu filhos, fizeram-no por anos inatingível.
Esse episódio influenciou negativamente grande parte da sua vida. Arrepende-se de algo?
Vana - Se pudesse, jamais teria ido àquela clínica. Um cirurgião plástico tenta disfarçar um cicatriz horrorosa à vista, no rosto, fazendo uma plástica, e mesmo assim é impossível fazer isso sem deixar uma marca. O que fiz foi mais ou menos isso: peguei a cicatriz e mudei de lugar, escondendo-a atrás da orelha. Tento conviver com essa monstruosidade ajudando outras vítimas. Mas não há cura para violências sexuais, ao meu ver. Pela minha experiência, e ouvindo outras, é como se nosso espírito tivesse sido recortado em sua força interior. Me sinto hoje forte em determinadas situações, mas ainda tenho horror dessa pessoa que me dominou em meu íntimo, mesmo que anestesiada. Ele ali foi mais forte, isso me apavora.
Você transformou a dor na ânsia de localizá-lo e vê-lo preso. Como se sente hoje?
Vana - Me sinto livre. Posso andar pelas ruas sabendo que ele está preso e jamais vai ser libertado. Sou uma pessoa como qualquer outra que deseja ver a justiça feita em sua totalidade, todos os envolvidos penalizados. Meu trauma não foi transformado, continua no mesmo lugar. O que fiz foi reagir para continuar a viver. A caçada que me propus a fazer pode ser classificada como legítima defesa. Por causa do pânico, fiquei presa dentro da minha mente e sem sair de casa por anos.
O que diria para quem sofreu esse tipo de violência?
Vana - Esse crime é secreto e covarde, geralmente não há testemunhas. É preciso que a vítima seja o mais verdadeira e detalhista possível em sua denúncia. Não há violentador de uma mulher somente, portanto é importante denunciá-los. Depoimentos reais vão deixar esses tarados no local correto: encarcerados. Ao nos despir da vergonha e fazer a denúncia, evitamos que esses estupradores seriais ajam contra outras.
Entrevista
"Fomos violentadas em nosso momento sagrado", diz vítima de Abdelmassih
Vana Lopes é personagem de "Bem-Vindo ao Inferno", livro em que relata o trauma sofrido quando tentava engravidar na clínica do médico
Larissa Roso
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