Como acontece com o futuro, o passado está sempre em construção. Cada vez que é reescrita, a história do país ressurge renovada, metamorfoseada, distinta. Sua versão mais recente é Brasil: Uma Biografia (Companhia das Letras), livro de 846 páginas que abarca desde a chegada dos portugueses até as manifestações de março deste ano, quando multidões saíram à rua para protestar contra o governo e a corrupção.
Parceria entre a historiadora Heloísa Murgel Starling e a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, a obra redimensiona fatos, transforma atores antes esquecidos em protagonistas, destaca minorias, indaga o passado através de questões do presente e converte a luta pela cidadania em personagem unificador dos 500 anos de Brasil.
Nesta entrevista, Lilia lembra que revisitar a história é importante porque ela nos espreita em cada esquina, incrustada em nosso cotidiano - de modo destacado na forma como a sociedade lida com a escravidão e com o mal-disfarçado preconceito racial. Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e Global Scholar na Universidade Princeton (EUA), Lilia figura entre os mais respeitados historiadores brasileiros da atualidade. É autora de obras como A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis - Do Terremoto de Lisboa à Independência do Brasil, D. João Carioca - A Corte Portuguesa Chega ao Brasil e uma biografia de Dom Pedro II, As Barbas do Imperador.
Por que chamar um livro de história do Brasil de biografia?
A Heloísa Starling e eu tínhamos a ideia de que a história de uma nação, como a de uma pessoa, é cheia de altos e baixos, de avanços e recuos. São os mesmos mistérios de uma trajetória pessoal. Toda biografia possui muitas nuanças, encruzilhadas, imponderáveis. A ideia da biografia foi se impondo primeiro como provocação ao leitor, segundo para fazer jus a essa discussão e terceiro para mostrar que não queríamos fazer uma história evolutiva e previsível. Demos o nome Uma Biografia com a ideia de que pode haver outras. Existe também a ideia de ser uma biografia não autorizada, o que é um pouco o nosso perfil do biografado.
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Como a senhora descreveria a personalidade desse biografado?
O Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. É um biografado difícil, paradoxal e cheio de contrastes. Ele é muito mais da lógica do "e" do que da lógica do "ou", porque é um biografado que admite inclusão social com exclusão social, que admite práticas de patrimonialismo com luta constante do povo nas ruas, reivindicando mais direitos. É um biografado que foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão e que ao mesmo tempo tem tantos traços de uma cultura mestiçada. Nesse sentido, esse biografado é mistura e separação. A dificuldade dele são suas ambivalências.
Vocês afirmam que um dos traços persistentes da história brasileira é "nossa difícil e tortuosa construção da cidadania" e fazem desse um fio condutor da obra. O termo "cidadania" entrou há pouco tempo no nosso vocabulário cotidiano. Em que medida o livro é fruto de visões que se tem hoje a respeito do que é relevante para o país?
Cada época olha para a história com as questões do presente. A nossa preocupação é o anacronismo, é não conseguir ver uma época com suas próprias lentes. Mas ao mesmo tempo isso é incontornável, porque a única maneira de retornar a um outro momento é recuando com as nossas indagações. A distinção que fazemos entre os conceitos de cidadania e república, a ideia de que o país vai construindo uma democracia, é um dos pilares do livro, mas o tema da república, no sentido de res publica, de cuidar do bem comum, não é nosso. Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, já falava nisso no século 16. Se você tomar o período da Primeira República, a questão da cidadania está na boca de todo mundo. O povo está na rua. Aliás, ele está na rua em diversos momentos, o que é uma surpresa do livro. Cidadania é uma questão da nossa agenda passada, presente e futura.
O Brasil de hoje já está contido, de certa forma, no Brasil colonial?
Ninguém escapa do passado. Vou dar um exemplo claro, a questão da escravidão. Tivemos um período prolongado de sistema escravocrata, espalhado por todo o país. Quem abrir qualquer jornal do século 19 verá escravos sendo vendidos, leiloados, penhorados, com seguro. Essa realidade está inscrita nos nossos costumes e no nosso vocabulário, sobretudo porque durante largo tempo lidamos com essa questão de forma envergonhada. Achava-se melhor não falar. Termos como boçal, ladino e ama de leite ainda estão presentes. Nossa arquitetura é muito marcada por essa divisão quase dicotômica entre área de serviço e área social. Quando estrangeiros vêm ao Brasil, notam uma divisão social clara nos restaurantes, nos clubes. Esse é um exemplo gritante do nosso passado. Há várias outros.
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Nota-se no livro uma preocupação enorme com o papel do negro na nossa história. Ele aparece como vítima, claro, mas também como protagonista. Essa ênfase tem a ver com a percepção de que há um discurso negacionista em relação ao preconceito racial?
Não existem bons racismos. O Brasil pratica uma política de eufemismos: nossa ditadura foi melhor, foi uma ditabranda, nosso racismo é melhor, nossa escravidão é melhor. Essa política de negação é muito clara. O Hino da República, feito em 1890, tem um momento em que diz: "Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país". Ora, a abolição tinha se dado há um ano e meio. É uma política de não ver. No centenário da abolição, fizemos uma pesquisa em que perguntamos aos brasileiros se eles tinham preconceito e 96% disseram que não. Quando perguntamos se conheciam alguém que tem preconceito, 99% disseram que sim. A terceira questão era qual o grau de relacionamento com essas pessoas. As respostas foram pai, mãe, irmão, avó. Os brasileiros se sentem uma ilha de democracia racial cercada de racistas de todos os lados. É uma modalidade de preconceito silencioso.
Temos visto uma série de conflitos, crimes e protestos relacionados com a questão racial nos EUA. A senhora vê diferenças entre as formas que a escravidão tomou lá e aqui e que repercutem nos conflitos de hoje?
Penso que a primeira coisa é o processo de abolição. Nos Estados Unidos, foi oficialmente de luta, de conflito, de reivindicação. No Brasil, por muito tempo, reconheceu-se a Lei Áurea como um presente da Princesa Isabel. O segundo aspecto é a entrada comparativamente tardia do Brasil na discussão dos direitos civis. Aqui, essa discussão está localizada a partir do final dos anos 1970. Há também a questão das modalidades diferentes de preconceito. No Brasil, temos mais um preconceito de marca. Nos Estados Unidos, é mais de origem. Isso tem a ver com o passado. Nos Estados Unidos, a lei determinava que se a pessoa tivesse sangue negro era negra até três gerações. No Brasil, temos uma régua de cor complexa, que nós chamamos de cor social. Manipulamos a cor em função de circunstâncias, de questões sociais. Se a gente pensar que racismo é uma linguagem, a linguagem brasileira é muito pautada por cor e cor social.
Essa diferença entre Brasil e EUA não teria origem também no modelo de escravidão?
Biografia não é destino, não é consequência, não é conta de dois mais dois. Mas pode-se dizer que nos Estados Unidos não houve escravidão no país como um todo. Então, a questão da origem africana ficou muito destacada. A gente sabe que não havia escravidão na Nova Inglaterra, mas havia muito preconceito. No Brasil, a escravidão estava totalmente disseminada. Havia um fenômeno alargado de filhos de senhores com escravos, que é a figura do mulato, do mestiço, do pardo. Essas figuras se tornaram centrais na sociabilidade e tomaram uma função social diferençada, começaram a ser identificadas pela cor. Na verdade era a cor social, porque a cor vinha da relação com o senhor branco.
A senhora estudou essa questão da cor social por meio de uma partida de futebol chamada "Preto contra Branco", realizada em Heliópolis, uma favela de São Paulo. O que descobriu?
Esse jogo é importante porque permite ver como manipulamos a cor social. Ele ocorre há muitos anos. Teoricamente, você tem 11 jogadores brancos versus 11 jogadores negros. Na prática, vejo que os jogadores mudam de time de um ano para outro. O que interessava era entender por que fazem isso. Você pode pegar pelo lado jocoso. Tem um jogador que diz: "Estou me sentindo mais branco neste ano". Mas minha pergunta era: por que você está se sentindo mais branco? E aí você vê a carga de sofrimento nessa negociação com a cor. Quando uma pessoa se dizia mais branca, provavelmente era porque casou com alguém mais branco, mudou-se para uma casa mais na fronteira da favela, comprou um carro novo. Mas a história muda. As ações afirmativas, tratando muito da autoestima, estão fazendo com que as populações negras se afirmem como negras e que busquem sua origem, sua história.
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As cotas raciais geram rejeição em certos grupos. Como a senhora interpreta isso?
Sou a favor de cotas, de ações afirmativas, mas não faço proselitismo. Não parto do princípio de que quem não pensa como eu pensa errado. Um argumento de intelectuais que respeito muitíssimo e que são contrários às cotas é o de que raça não é um conceito biológico e, portanto, só há uma raça. Por isso, segundo eles, as políticas afirmativas poderiam produzir o racismo. Mas a minha questão fundamental é que os homens produzem sentido por cima dos conceitos. O conceito de raça social é uma produção por sobre a noção biológica de raça. A cultura é quase uma segunda natureza, tem a capacidade de construir a realidade. Penso que ações afirmativas são políticas transitórias, não para sempre, e sou partidária da ideia de que por vezes é preciso desigualar para igualar. É o que nós devemos à história.