Depois de cruzar os nove mil quilômetros que separam Gênova do Rio de Janeiro em 132 dias, os três pioneiros da imigração no Estado - acompanhados por suas famílias - ainda teriam pela frente mais mil quilômetros para percorrer antes de chegar à serra gaúcha. Stefano Crippa, 22 anos, Tommaso Radaelli, 39, e Luigi Sperafico, 38, tiveram ao menos outras seis paradas até chegarem a São Sebastião do Caí - na época, chamada Porto dos Guimarães.
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O grupo deixou a região da Lombardia em janeiro de 1875, viajou de trem de Milão a Gênova para embarcar rumo ao Brasil. O diferencial deles - assim como o de outros imigrantes que vieram ao Estado -, em comparação aos que se instalaram em São Paulo, é que aqui pagaram por terras devolutas do Império, desenvolvendo a região. No centro do país, o objetivo era substituir mão de obra escrava em fazendas de café.
A historiadora Loraine Slomp Giron explica que a única noção que os imigrantes tinham era de que viriam ao Sul do Brasil.
- Os lotes (terrenos), eles também não escolhiam. Havia opções quando havia lotes vazios de amigos, e recebiam indicações. Mas isso eles só sabiam quando chegavam aqui, nunca na Itália - relata.
O único benefício, se é que se pode falar em facilidade naquele contexto, era o valor dos lotes.
- Eles sabiam que havia terras baratas para vender, com carência de 10 anos para começar a pagar e prestações baixas - afirma Loraine, complementando que, além do valor do terreno, também era preciso pagar um valor proporcional a 20% do lote referente a adiantamento do Império, com o qual compravam a passagem e sementes, por exemplo.
Segundo a historiadora, os imigrantes tinham, no Brasil, a posse da terra apenas depois de terem pago por ela, ao contrário do que ocorria nos Estados Unidos, onde se apossavam do lugar para depois o legalizar. Essas terras oficiais disponíveis a baixos custos atenderam a 90% daqueles que chegaram aqui até o final do século 19:
- A partir de 1891, com a nova Constituição e, com a Proclamação da República, em 1889, as coisas mudaram, e eles não eram mais subsidiados. Depois de 1889, só vinham aqueles que tinham algum bem.
Atividade agrícola em um mesmo pátio
As três famílias pioneiras viviam em locais chamados de corte ou cortille, na localidade de Omate
Na Itália, a vida também não tinha privilégios. As famílias pioneiras moravam em Omate, fração da cidade de Agrate Brianza, na região da Lombardia - situada a 40 quilômetros de Milão.
Ainda hoje, o lugar conserva o ar pacato da época da imigração. Nesses 140 anos, a população passou de 1.171 para 2.650 habitantes.
Os moradores que viriam a se tornar imigrantes viviam em locais chamados de corte ou cortile, que ainda existem na cidade. A professora e pesquisadora italiana Chiara Canesi relata que os Radaelli viviam no maior cortile de Omate, o Cortile de lo Stallone, composto por 30 famílias. As residências tinham dois andares e eram padronizadas: no plano inferior, havia um estábulo e uma cozinha. No superior, os quartos - de acordo com ela, era comum os familiares dividirem a mesma cama, dormindo em sentidos contrários, cabeça e pé.
- Eles viviam em comunidade, mesmo na atividade de fazer o pão, que era de responsabilidade das mulheres. Elas se ocupavam também da cozinha e das crianças, os homens, da atividade agrícola. Todos viviam no pátio, onde a atividade agrícola continuava, onde a presença de animais era um elemento vital ao lugar. Se vivia junto inclusive à noite: depois de comer, havia um momento em que os vizinhos se encontravam nos estábulos, especialmente no inverno, para se esquentar, para contar histórias e rezar - conta Chiara.
Sperafico vivia no cortile chamado Ost. Crippa, em um batizado com o próprio sobrenome (foto à esquerda), ambos idênticos ao de Radaelli. Chiara destaca que, no entanto, não era natural os moradores de Omate deixarem o lugar em busca de uma vida melhor no Exterior.
Em cartas, imigrantes italianos descreviam o Rio Grande do Sul como um lugar de fartura
Fé para suportar as dificuldades
Um dos netos de Tommaso Radaelli, Franco Radaelli, 86, ainda vive no lote ocupado pelo avô e transformou a antiga moradia da família em um paiol. Como o parente imigrante, sempre trabalhou na agricultura. Franco lembra das histórias de sofrimento contadas pelos antepassados:
- Eles vieram do Rio Caí para cima a pé. Não existia nada.
A Estrada Rio Branco, pela qual subiram, em São Sebastião do Caí, era mata fechada. Assim como ela, a ligação de Montenegro à Serra, ponto de desembarque de quem iria às colônias Conde DEu (Garibaldi) e Dona Isabel (Bento Gonçalves), era precária e sem a possibilidade do uso de carroças. Tanto que, oito anos depois da chegadadas primeiras famílias, o cônsul Enrico Perrod - primeiro diplomata italiano a visitar a região - descreveu as más condições em um relatório de 1883. Escreveu: "a estrada é horrenda e tão ruim que, na Itália, apenas cabras a percorriam, com banhados a cada passo e sem pontes".
- Foram iludidos. Se não tivessem essa fé não teriam suportado - ressalta Beatriz Elvira Bergamo Flach, 66 anos, bisneta de Crippa.
Beatriz é proprietária, com o marido, do armazém que foi construído pelo bisavô e vendia "um pouco de tudo". Esse espírito empreendedor é destacado pelo diretor do museu Paolo Cresci (em Lucca, na Itália), Piero Bagioni, que tem um dos principais acervos documentais sobre imigração.
- Muitas vezes, o espírito empreendedor fazia com que alguns deles comprassem um pedaço de terreno na linha ferroviária, talvez antecipando a chegada da ferrovia, instalassem um armazém, uma espécie de negócio, e a linha ferroviária acabava passando ali. Todos compravam ali e o lugar se tornava o centro da cidade - explica.
A professora aposentada Lourdes Sperafico, 70, descendente de quinta geração de Luigi e moradora da Linha São Miguel, tem na honestidade e na religiosidade as principais lembranças dos antepassados. Mas sempre com muito trabalho:
- Eles não admitiam ficar sem fazer nada. Havia tarefa até para nós, quando éramos pequenos, que era recolher ovos, juntar gravetos, encher os baldes ou tratar as galinhas. Só esse trabalho duro pode explicar o progresso. Eles não ficaram ricos, mas todos deixaram casa para seus filhos.