A Beija-Flor quis reviver a memória de um griô - contador de histórias, fundamental na cultura oral africana - e levou o caneco do Carnaval carioca, mas não contou tudo.
As críticas começaram antes mesmo do desfile na Sapucaí. Depois da vitória, cresceram. A escola vendeu uma Guiné Equatorial bela e formosa, estampada em cores fortes, sem violações dos direitos humanos, tortura ou repressão. Sem ditadura.
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Na avenida, a comunidade de Nilópolis fez o que sabe e encantou os jurados, que ignoraram tais entrelinhas ao julgar o enredo. O Salgueiro, que terminou como vice, pôs na folia a culinária mineira. Perdeu dois décimos decisivos no quesito.
Nem bem a poeira da comemoração baixou e quem vive "a maior festa do mundo" mostrou sua decepção, um baixo astral similar ao que o brasileiro vem sentindo quando ouve "operação Lava-Jato".
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- Nosso Carnaval virou uma indústria, uma plataforma para gerar celebrizações. Vivemos em um mundo em que as pessoas se tornam celebridade antes dos feitos. A Beija-Flor vendeu seu prestígio para um ditador africano - disparou ao jornal O Globo o antropólogo Roberto DaMatta, autor de Carnavais, Malandros e Heróis.
Patrocínio teria sido de empresas brasileiras
A rusga começou com uma denúncia: a Beija-Flor teria recebido R$ 10 milhões do ditador Teodoro Obiang. Ainda na euforia da comemoração, Fran-Sérgio Oliveira, carnavalesco da escola, disse que o patrocínio veio de empreiteiras com obras na Guiné Equatorial.
Nomeou Queiroz Galvão, Odebrecht (citadas na Lava-Jato) e o grupo ARG. A Odebrecht negou, as outras ainda não se pronunciaram. Fran-Sérgio afirmou que o
país só deu apoio cultural e saiu-se com essa: "É um povo que sofreu muito e que, através do seu presidente, está construindo um país novo, que pensa em saúde, infraestrutura, saneamento básico. O povo é superfeliz com isso, então, não importa o regime".
Para completar, estudiosos criticaram referências históricas do desfile. A comissão de frente, que foi elogiada, tinha imagens do homem de Neandertal, que, segundo a antropóloga Alba Zaluar afirmou ao jornal O Globo, nunca pisou na África, continente berço do Homo Sapiens. Ela classificou o desfile de "África estereotipada".
Financiamento das escolas é debate antigo
Não é a primeira vez que se discute os patrocínios escusos para as escolas de samba. Para citar alguns exemplos, em 2006 a Vila Isabel recebeu apoio do governo Hugo Chávez para o enredo campeão, o Salgueiro já foi apoiado por uma revista de celebridades há dois anos e, em 2004, recebeu dinheiro de usineiros da cana-de-açúcar.
Além disso, há a verba dos direitos de transmissão da Rede Globo, a bilheteria da Sapucaí e o apoio governamental (do Estado e da prefeitura do Rio de Janeiro), afora as leis de incentivo federais.
É senso comum que esta grande tradição foi construída com dinheiro ilícito, do jogo do bicho, do tráfico, entre outros. Em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, Neguinho da Beija-Flor foi claro e irônico.
- Eu sou do tempo que desfile de escola de samba era uma bagunça. Se não fosse o dinheiro da contravenção, hoje não teríamos o maior espetáculo audiovisual do planeta. Agradeça à contravenção - disse, ao reforçar que todas as escolas recebem dinheiro sujo.
Mas precisaria? Para o pesquisador Jackson Raymundo, que pesquisou o Carnaval de Porto Alegre em tese na UFRGS, o Carnaval deveria contar com mecanismos de financiamento efetivos, republicanos e transparentes.
- Temos que defender transparência, financiamento lícito, mas também dizer que é culturalmente importante não aplaudir sem debate quando prefeituras decidem cortar verbas - defende.
Para Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o debate do financiamento é latente.
- Acho que fora do Carnaval, das notas e do julgamento, devemos tentar discutir essas questões. Esses patrocínios são muito predadores. Não precisariam ser uma louvação ao patrocinador, poderia ser uma associação do nome à entidade. Poderiam ter falado apenas da África, por exemplo - diz.
*Com agências