Em letras garrafais, o banner sugeria a fala de alguém: "Esqueci o 'não' em casa". Com um rolo de fita isolante, uma tesoura e uma dose de indignação com o conteúdo considerado machista e apológico à violência contra a mulher, a publicitária Pri Ferrari e a jornalista Mila Alves, paulistas, intervieram no anúncio encomendado pela Skol para o Carnaval, adicionando um "e trouxe o nunca". O protesto viralizou na internet, gerou debates acalorados, fez a empresa tirar a propaganda das ruas e suscitou - de novo - a pergunta: o mundo está chato ou menos conivente com o politicamente incorreto? Os cidadãos estão exagerando na patrulha ou, em tempos de redes sociais, têm mais voz e mais canais para expressar descontentamento com atitudes que, antes, passavam batidas?
"Um homem nunca vai poder sentir o que sentimos", diz ilustradora que fez intervenção em propaganda da Skol
A intenção das peças publicitárias, informou a Skol em nota, era estimular as pessoas a aceitar convites da vida e aproveitar os bons momentos. Alertados do entendimento dúbio, anunciaram a substituição do anúncio.
Zero Hora ouviu pensadores de diferentes áreas para entender este fenômeno da sociedade contemporânea - e que não está restrito apenas ao bom ou mau gosto das campanhas publicitárias. Passa pelo humor (não à toa, a defesa normalmente sai-se com o "era só uma piada!"), pela televisão, pela literatura - e causa o desconforto que, conforme especialistas, é inerente ao convívio social.
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- Todo movimento social busca expandir seu imaginário para o maior número possível de pessoas. Se pode haver uma crítica ao politicamente correto, é isso: a tendência a querer que todo mundo pense do mesmo jeito. Em alguns casos, traz benefícios. Mas inevitavelmente vem junto este traço de mal-estar - comenta o psicanalista Robson Pereira, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa).
Colocar temas sensíveis na pauta da mesa de bar, atualmente, é como acionar uma dinamite - o que não ocorria poucos anos atrás. Didi Mocó passou incólume ao chamar Mussum de crioulo, crianças cantaram Atirei o Pau no Gato sem represálias dos ativistas da causa animal e Vinicius de Moraes não foi criticado por dizer que beleza é fundamental.
- O que é aceito ou não como correto varia ao longo do tempo. Aquele comentário que hoje é considerado racista era aceito como natural. Então, é preciso refletir: é exagero ou a sociedade percebeu que existia racismo implícito e, agora, não mais aceita? - pondera o cineasta Pedro Arantes, diretor do documentário O Riso dos Outros, que aborda os limites do humor.
De fato, o tempo cronológico é o melhor estimulante ao desenvolvimento da crítica, segundo o psicanalista Robson Pereira:
- Os jornais do século 19 diziam que ter escravos era um direito natural do senhorio. Como abrir mão de algo que era tido como natural? Hoje, achamos um absurdo, mas porque a distância faz a gente enxergar tudo com outros olhos.
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É preciso, porém, cuidado para que a crítica não resvale para a mediocridade, conforme o doutor em sociologia e professor da Universidade do Vale do Taquari (Univates), Renato de Oliveira. Para ele, a ironia é saudável à vida social, e a onda do politicamente correto é perigosa, pois transforma grandes temas em tabus:
- Quando se perde a medida, vemos a tentativa de censurar Monteiro Lobato porque ele diz que Anastácia (personagem negra do livro O Sítio do Picapau Amarelo), para fugir de uma situação de perigo, subiu em uma árvore como "uma macaca preta". É só ler o texto para ver que, se o personagem fosse branco, ele usaria a expressão "macaca branca". A falta de prática de debate público no Brasil faz com que qualquer coisa seja transformada em um caso dramático - aponta.
Pensa diferente a professora da faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC) Lola Aronovich, autora do blog feminista Escreva Lola Escreva. Há de se combater esse tipo de manifestação, já que por muito tempo as vítimas se calaram.
- Machismo, racismo, ataque aos direitos LGBT ou dos animais não são novidade para ninguém, mas agora as pessoas estão acordando e bradando contra isso tudo. Não dá mais para um comediante ser aplaudido pela sociedade justamente por ajudar a destruí-la - analisa.
Todas essas vozes - de prós e de contras - só são ampliadas por causa das redes sociais. As opiniões não são mais limitadas ao ambiente familiar ou aos amigos, mas disseminados como fogo no mundo online.
- Na rede, as opiniões engajam, reverberam, geram discussão a ponto de apenas duas meninas, no caso da Skol, terem tido o poder de derrubar um anúncio - diz o jornalista, empresário e escritor Adriano Silva, ex-diretor do Núcleo Jovem da Editora Abril. - Isso significa que o microfone não está mais na mão de um, mas de vários. Por isso, o mundo não está mais chato. Está, sim, muito mais interessante.
Desceu quadrado
Protesto contra publicidade da Skol reacende debate sobre o politicamente correto
A ação de repúdio de duas garotas à campanha de Carnaval da marca de cerveja motivou discussões acaloradas e incitou a pergunta: está havendo um exagero ou os cidadãos têm mais voz para expressar descontentamento com atitudes que, antes, passavam batidas?
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