Quando ela deu o seu ponto inaugural? Como foi o primeiro alinhavo? Disso, a costureira Lu Gastal, 42 anos, nem lembra. Mas tem bem vivo na memória o período em que as agulhas e linhas a salvaram do tédio e da depressão pela primeira vez. Estava grávida da filha mais velha e, devido a complicações na gestação, precisou ficar seis meses em repouso absoluto. Sem poder sair da cama, o ponto cruz foi o companheiro das horas solitárias e ociosas. A velha técnica aprendida um pouco com as mulheres mais velhas da família e outro pouco com as revistas de artesanato foi, para Lu, o que muitos outros tipos de artesanato são para tantas mulheres e homens. Um respiro de alegria e vida, capaz de alegrar uma rotina cinzenta e melhorar um humor alquebrado pelo peso dos problemas cotidianos.
Foi em busca dessa inexplicável sensação de bem-estar e prazer que Lu partiu quando decidiu largar a advocacia para apostar em seu talento como artesã. Escolha difícil, mas que uma vez feita, só trouxe desafios e felicidades. É claro que nem todo mundo precisa - ou quer - abandonar a profissão atual para tornar-se artesão. Para beneficiar-se do poder restaurador do artesanato basta praticá-lo, seja como for. Esporadicamente, todos os dias, toda a semana, com lucro, só para presentear amigos, não importa. Basta praticar e contemplar o resultado. Aí está um apoio terapêutico vitorioso em casos que vão desde a depressão até os transtornos de humor. Criar com as próprias mãos pode mudar a vida.
Que o diga a personagem que ilustra a nossa capa. Natural de Cachoeira do Sul, Luciana Gastal gosta de estar entre linhas, agulhas e paninhos desde que se entende por gente. Ama cores, misturas, texturas. Mas tornar-se costureira em tempo integral, como profissão, foi um caminho longo e cheio de dúvidas. O Direito foi a primeira escolha profissional, feita quando ainda morava em Cachoeira. Depois de casada, viveu em Pelotas por nove anos, onde teve as filhas e praticou a advocacia em tempo integral. Mesmo com pouco tempo livre, a artesã que dormia dentro de Luciana acordava de vez em quando, especialmente nas festinhas de aniversário das filhas ou em outras comemorações familiares.
- Todo mundo ficava espantado, impressionado com a decoração caseira que eu fazia para as festinhas ou com os mimos que eu inventava para os almoços de domingo. Com essa onda de coisas industrializadas, o que é feito à mão surpreende - recorda.
De Pelotas a família partiu para Brasília. Sem advogar e atuando como assessora legislativa, Lu preenchia a solidão por estar longe da família com arte. Foi na Capital Federal que participou das primeiras feiras de artesanato. E foi onde criou coragem para pensar em uma vida inteiramente dedicada às costuras.
- Nunca tinha participado de feiras, não sabia como era. Fiz umas coisinhas de Natal e, no primeiro dia, vendi tudo. A surpresa foi tanta que me obrigou a pensar mais seriamente sobre isso - comenta.
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Com a ajuda do Sebrae, Luciana aprendeu mais sobre empreendedorismo e sobre os desafios que enfrentaria se decidisse mesmo seguir o caminho de artesã. Junto com o medo e a ansiedade vinha sempre aquela sensação de conforto e confiança que invadia o corpo e a alma enquanto criava mais uma peça de patchwork - técnica de costura para fabricação de peças de pano.
Quando a família voltou para o Rio Grande do Sul, em 2010, o destino era Porto Alegre. "Ou tu empreendes agora e faz isso acontecer, ou nunca mais. Tens que decidir", disse o marido a uma Luciana esperançosa e apavorada. O incentivo do pai foi o pontapé que faltava para que se encerrasse a fase advogada - e começasse o período Lu Gastal, artesã.
De lá para cá, muito aconteceu na vida da Lu. Um programa sobre artesanato na TV Aparecida, emissora com grande audiência no interior de São Paulo, tornou-a muito conhecida pelas aulas relâmpago e pelas dicas fáceis e criativa para quem também gosta de artesanato. Um blog e o canal Lu Gastal no Youtube também espalharam pelo Brasil a novidade. Para reunir mais gente em torno da paixão pelo patchwork, Lu começou a organizar, pela internet, os PatchEncontros. Idealizou uma grande aula que misturasse técnicas de artesanato com empreendedorismo. Mas achou que não daria muito certo, afinal, quem iria querer participar? Em três anos já foram realizados 24 PatchEncontros, com a participação de mais de 1,5 mil alunas em várias cidades do país.
- Muitas vêm em busca de um novo rumo na vida, para tornarem-se empresárias, como eu. Mas muitas outras vêm somente por que querem aprender a fazer bonecas de pano e patchwork. E para fazer amizade, conhecer gente nova.
No ano passado, Lu Gastal foi eleita Artesã do Ano em uma feira de artesanato popular, em São Paulo. Também assina uma linha de tecidos e participa de feiras internacionais em países como Alemanha e França. O pequeno ateliê localizado na rua Eudoro Berlink, montado com móveis antigos da família e coberto de panos e linhas até o teto, ficou pequeno. Na última quinta-feira, 13, ela e sua equipe - sim, agora Lu trabalha com uma equipe de três funcionárias - inauguraram um espaço maior, na mesma rua, que promete acolher com mais conforto as mulheres que buscam a inspiração e a experiência de quem mudou de vida em nome do artesanato. Cursos, palestras e encontros serão mais frequentes, garantiu a anfitriã da casa nova.
- Se eu ainda fosse advogada, certamente teria mais dinheiro. Mas não seria tão feliz.
Quando era bem pequena, a professora de Artes Lavínie Telmo, 37 anos, ficava ao pé da mãe enquanto ela fazia seus cursos de artesanato. Era pintura em tecido, bordado e costura, técnicas que aplicava em enxovais de cozinha que vendia às amigas e colegas de trabalho. Inspirada pela mãe, esperou com euforia pelo presente que ganhou quando completou seis ou sete anos: a máquina de costura da Estrela, que possibilitava a fabricação de roupinhas para bonecas sem riscos de cortes ou furos de alfinete. A paixão era tão intensa que Lavínie não pode mais abandonar a sensação de prazer e conforto que sentia quando punha mãos à obra para fazer artesanato. E, quando cresceu, escolheu uma profissão em que fosse possível continuar sendo artesã.
Durante o curso técnico de Desenho Industrial, na Escola Técnica de Pelotas, e a faculdade de Artes Visuais, na UFPel, Lavínie usou o talento para fazer dinheiro - coisa rara para estudantes.
- A primeira coisa que fiz para vender foi cestaria em jornal. Depois aprendi biscuit, que expunha e vendia em feiras em Rio Grande e Pelotas. E assim eu ia, aprendendo coisas novas e praticando. Eu sabia que nunca poderia viver longe do artesanato.
Foto: Diego Vara
Quando tornou-se professora e veio morar em Porto Alegre, Lavínie quis compartilhar com os alunos o prazer que conheceu na infância. Foi assim que criou, no município de Sapiranga, o projeto Ateliê na Escola, que ensinava aos alunos várias técnicas de artesanato, escultura e pintura.
- O mais importante não é o resultado final em um trabalho perfeito. O importante é a criança se expressar por meio da técnica e saber que pode criar. Isso faz muita diferença, pois eleva a autoestima e dá confiança - explica.
Alguns meses depois de dar à luz o filho, Matheus, decidiu trabalhar em Porto Alegre, para reduzir o tempo dos deslocamentos. Nos períodos em que ficou procurando trabalho, dedicou-se ao artesanato com mais afinco. E resolveu, com massa, pincéis e tinta, todas as angústias. Hoje, Lavínie atua como instrutora de arte no Colégio Rosário, onde apressou-se para implantar seu método de trabalho - que envolve, claro, muita arte e artesanato.
- Gosto tanto que faço questão de ter esse envolvimento com trabalhos manuais e arte na minha vida pessoal e profissional. Por isso sou tão feliz na minha carreira - comenta.
Lavínie já fez de tudo um pouco quando o assunto é artesanato. Biscuit, esculturas em cabaça, feltro, borracha e argila, bordado, até tricô. Mas a verdadeira paixão é a pintura em tela, técnica que pratica desde a faculdade. Fã de Romero Britto, começou reproduzindo algumas obras do artista até que se sentiu segura para estabelecer o seu próprio traço, no estilo inaugurado pelo pernambucano. Hoje, desdobra-se para atender as encomendas de amigos e lamenta não se dedicar à pintura o tanto quanto gostaria.
- Se tivesse mais tempo, pintaria muito mais. É alta dose de felicidade, direto na veia!
O resgate do lado bom
Arte e artesanato são, comprovadamente, coadjuvantes eficientes no tratamento ou simplesmente no manejo de doentes mentais ou de pessoas acometidas por patologias psiquiátricas, como os depressivos. Um dos exemplos mais contundentes dessa eficiência é a Oficina de Criatividade, fundada pela psicóloga Bárbara Neubarth, no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. No grupo, portadores de várias patologias praticam diferentes técnicas artísticas com o objetivo de melhorar a capacidade de expressão e comunicação.
- Buscamos, com a arte, resgatar o que ainda há de bom e saudável nos indivíduos. Muitas vezes, a doença tende a minimizar esse lado sadio, empurrando a pessoa cada vez mais para baixo. Com a prática artística, a porção do sujeito que ainda não foi prejudicada pela doença se manifesta - comenta Bárbara.
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Dentro da Oficina, um grupo muito particular se destaca. As Bordadeiras do São Pedro são senhoras idosas, todas com algum tipo de patologia psiquiátrica. Mas elas conseguem se relacionar, se comunicar e até expressar afeto e prazer ao sentarem-se em torno de uma mesa para bordar.
- Sempre deixamos claro que o importante não é fazer um trabalho super bem acabado, esteticamente perfeito. Importante é interagir com os materiais e com as técnicas e conseguir exercitar a criatividade e a expressão por meio deles.
A respeito do efeito benéfico que o artesanato produz até mesmo em pessoas sem patologias psicológicas, Bárbara sugere que a prática exercita várias habilidades e acaba favorecendo o encontro do indivíduo consigo mesmo. Em tempos de hiperconectividade e estímulos externos a todo momento, por meio do celular e da internet, as pessoas costumam encontrar um alento em trabalhos manuais e artísticos que demandem atenção e concentração.
Ela só queria fazer uma casinha bonita e funcional para seus gatos. As que encontrava nas pet shops não eram adequadas para as necessidades dos três bichanos que moram com ela e o marido. Depois de muito procurar alternativas, viu na internet o que seria possível fazer com técnicas de marcenaria. E decidiu se matricular em um curso. Um ano e meio depois, a advogada e funcionária pública Mariluce Dias, 51 anos, orgulha-se de tudo o que já fez com trena, martelo e pregos. E nem pensa em parar.
- É muito bacana perceber que somos capazes de fazer coisas tão legais com nossas próprias mãos. Aumenta a nossa estima e nos estimula a sempre querer aprender mais, para fazer uma peça ainda mais complexa e bonita - comemora.
No apartamento já se pode ver as criações de Mariluce. Um banquinho simples foi a primeira. Nem acreditou quando ficou pronto. Para pintá-lo, já fez também um curso de pintura em madeira. Depois dele vieram outros móveis, algumas caixinhas e camas para os gatos. O próximo passo será fazer um curso de estofaria artesanal, para incrementar as caminhas com uma espuma bem fofa e confortável para seus bichinhos. Nas casas das amigas e dos familiares também há trabalhos de Mariluce, que descobriu o prazer de presentear os mais queridos com objetos feitos por ela mesma. Justamente por isso, nem pensa em um dia vender peças de sua produção. Tudo o que faz serve mesmo para embelezar a sua casa ou as casas de quem o casal deseja agradar.
Foto: Carlos Macedo
- Eu não sabia como era bom fazer marcenaria. Isso me deu estímulo para querer aprender outras coisas, outras técnicas.
Além de divertido, praticar artesanato é, para Mariluce, uma terapia de alto desempenho. Desde que tornou-se artesã, sente-se mais alegre, mais confiante e mais feliz.
- Quando estou na minha mesa de trabalho, com a madeira, as serras e os pregos, meu único problema são as medidas, os cortes, os arremates. Mais nada perturba a minha concentração e nenhuma outra preocupação me vem à cabeça - afirma.
Mas, afinal, e a casinha para os gatos? Orgulhosa, ela mostra a foto do projeto ainda inacabado no celular. Como não tem um ateliê em casa, produz somente nos dias em que tem aulas, na escola de marcenaria. E a peça que motivou toda essa revolução na vida de Mariluce ganha, a cada sábado, novos contornos e arremates, até que esteja pronta para servir de lar para o grandalhão Chico, um gato de 13 anos que mal pode esperar pela nova acomodação.
- Depois que terminar essa, já vou começar outra ainda melhor.
Ela sabia das coisas
A expressão por meio da arte e o prazer de criar com as próprias mãos não foram, desde sempre, reconhecidos como instrumentos terapêuticos dentro da psiquiatria. Devemos a uma mulher chamada Nise da Silveira, nascida em 1905, em Maceió, o fato de podermos fazer artesanato ou arte como forma de vivermos melhor. Ou como instrumento para um tratamento psicológico. Nise formou-se médica na Bahia, em 1926, e logo se interessou pela neurologia e psiquiatria. No trabalho que desenvolveu em hospitais psiquiátricos, nunca aceitou aplicar as técnicas terapêuticas praticadas na época, como eletrochoques e lobotomia, por considerá-las muito violentas.
Foi denunciada por possuir livros marxistas e passou 18 meses presa. No Presídio Frei Caneca, conheceu Graciliano Ramos e foi citada por ele como personagem na célebre obra Memórias do Cárcere. Em 1944, já solta e livre das acusações, passou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio. Por entrar em constante conflito com os médicos por causa dos métodos aplicados, foi transferida para a área de terapia ocupacional. Na época, terapia ocupacional era o nome dado aos serviços de manutenção e limpeza que alguns doentes faziam. Nise então criou ateliês de pintura e modelagem para que os doentes pudessem se expressar e retomar alguns vínculos com a realidade e o mundo exterior por meio do trabalho manual e artístico.
O resultado da dedicação da médica foi a criação do Museu de Imagens do Inconsciente, instituição voltada para o estudo e pesquisa sobre patologias e terapias com arte e que também preserva as obras produzidas nos ateliês criados por ela.