Ela sente a pior das dores há 23 anos, sem trégua. Perdeu o filho único, vítima de Aids, no dia 7 de julho de 1990. Depois da tenebrosa manhã em que Cazuza sucumbiu a uma crise séptica, sua mãe, Lucinha Araújo, 77 anos, fez um breve luto, um isolamento para tentar processar aqueles acontecimentos pavorosos que já eram esperados desde o diagnóstico, mas revelaram-se muito piores do que as expectativas. Mas não conseguiu viver na introspecção por muito tempo. Por temperamento e pela ligação forte que tinha com o filho, não pode fechar-se em seu sofrimento. Poucos meses depois da tragédia, Lucinha fundou a Sociedade Viva Cazuza, para acolher crianças soropositivas e prestar apoio a elas e suas famílias.
Nestes últimos 23 anos, preservar a memória do filho e, principalmente, ajudar outras pessoas com a mesma doença que o colheu têm sido os principais objetivos da vida de Lucinha. Mulher determinada, não mede esforços para sustentar o que criou. Associou a Viva Cazuza a projetos culturais, recebeu apoio de governos e escreveu um livro, Só as Mães São Felizes, cujo lucro foi revertido para a entidade.
Apesar das conquistas, não esconde os problemas financeiros que assombram a Sociedade. Bancada pelos direitos autorais da obra de Cazuza, está quase sempre no vermelho, devido aos gastos altos com cada paciente. Para equilibrar o caixa, projetos de alcance nacional como o Cabeleireiros Contra a Aids, em parceria com a L'Oreal, são providenciais. Não apenas pelo dinheiro, mas para manter o tema da Aids em discussão. Para Lucinha, a doença saiu de moda, já não se fala mais dela. E isso está gerando mais contaminações. Nesta entrevista, a mãe de Cazuza comenta como tem sido sua vida e seu trabalho com os soropositivos desde a morte do filho.
Donna - Você acha que as pessoas estão esquecendo da prevenção?
Lucinha - Acho. Não, tenho certeza. E esses remédios novos são, em parte, responsáveis por isso. Antigamente a pessoa ficava desfigurada e os outros tinham medo de contrair. Hoje em dia se pensa, erroneamente, que ao tomar o coquetel elimina-se a doença. Mas não é assim. A Aids não tem cura. Tem, sim, paliativos, os antiretrovirais. Mas o médico precisa receitar, não é chegar em uma farmácia e comprar. De acordo com a sua situação e os seus exames, o médico vai recomendar a sua medicação. É uma coisa desagradável tomar esses remédios, eles têm efeitos colaterais. Os remédios não são ruins, pelo contrário! Mas o lado ruim, sob o ponto de vista da prevenção, é que os doentes não ficam mais com aquela aparência, então é mais difícil sensibilizar a sociedade para a prevenção.
Donna - Mas isso é bom para os soropositivos, não é? Assim eles podem se resguardar.
Lucinha - Sim, é claro que é maravilhoso para quem tem o vírus. Desde que a pessoa se proteja na hora de fazer sexo, para não infectar outras. As pessoas eram apontadas na rua, e isso não existe mais. Se você vier aqui na Sociedade Viva Cazuza, as crianças estão saudáveis, gordinhas, rosadas. E todas são HIV positivo.
Donna - Qual a esperança para essas crianças?
Lucinha - A esperança é que daqui a algum tempo venha a cura definitiva. Eu acredito que daqui a uns 10 anos a cura será encontrada. Existe muita gente trabalhando nisso, aos poucos os antirretrovirais estão sendo mais aperfeiçoados. Quando o Cazuza estava doente, não tinha nenhum. Somente o AZT. Hoje tem mais de 23 tipos diferentes.
Donna - Como está a Sociedade Viva Cazuza? Permanece em dificuldades financeiras?
Lucinha - Nós vivemos dos direitos autorais da obra do Cazuza. Esse ano foi maravilhoso para nós. O ano do filme também foi muito bom, pois tivemos 10% da bilheteria. E esse foi o filme brasileiro mais visto no ano de 2004. Nós vivemos um ano com o dinheiro do filme. E agora estamos com uma ajuda da prefeitura também, que não cobre as despesas, mas me deixa mais tranquila. E temos participação nos eventos como Rock in Rio e o musical Cazuza: Pro Dia Nascer Feliz (estreou no início de outubro no Rio de Janeiro para uma temporada de aproximadamente cinco meses). Agora estou respirando aliviada. Além disso, acho que o Cazuza lá de cima protege. Ele está nos vendo ajudar tanta gente, com a melhor das intenções, então ele está lá torcendo.
Donna - Você diz que Cazuza está sempre presente, ao seu lado. Como é isso?
Lucinha - É uma delícia. Eu falo muito nele, não tenho problema nenhum de falar nele. Falo coisas boas, por que ele só me deixou lembranças boas. Eu tenho a Sociedade Viva Cazuza, então falo todo dia esse nome. Quando tenho dúvida de alguma coisa, peço um sinal. Digo "meu filho, me dá um sinal. Será que é isso mesmo que eu devo fazer?". Pode contar que eu ligo o rádio e está tocando Cazuza. Os meus sinais são esses. Mas essas coisas de espiritismo, olha, já recebi muitas mensagens, mas nunca houve uma que eu tivesse certeza que era dele. O dia que for ele mesmo, eu vou saber. Por enquanto, não. E eu falo com ele em pensamento, todos os dias antes de dormir. Enfim, ele está sempre comigo. Antes de morrer ele me disse: "Mamãe, aconteça o que acontecer, eu vou estar sempre perto de você". E ele realmente está.
Donna - Ele era filho único.
Lucinha - É, infelizmente. Ou felizmente, não sei. Dois iguais eu não ia resistir, ia ser trabalho demais (risos). Mas eu gostaria de ter tido outro filho, ter netos. Para me conformar, penso que meus netos são as músicas que ele deixou, a memória dele, o exemplo de vida. Procuro me consolar.
Donna - Você está com 77 anos. Como está a energia?
Lucinha - Sou uma pessoa ativa, o trabalho me ajuda muito. A melhor coisa que eu fiz na minha vida foi fundar a Sociedade Viva Cazuza. Ao mesmo tempo em que eu ajudo, também sou muito ajudada. Aqui eu recarrego minhas baterias e vou para a casa enfrentar a vida. Venho aqui todos os dias e vou continuar vindo enquanto tiver forças e saúde.
Donna - Como é a sua rotina?
Lucinha - Passo a metade do dia no trabalho. Fico de manhã em casa. Sou prendas domésticas, então eu atendo o meu marido, que é aposentado, fico com ele. Quando chega meio dia, uma hora, eu vou para Laranjeiras e fico até às sete. Depois volto para casa. O João está lá me esperando, a gente vê novela ou sai para jantar... É a vidinha de um casal que está junto há 57 anos.
Donna - A Sociedade é uma parte muito intensa da sua vida.
Lucinha - É sim. Em vez de ir ao psiquiatra, por que eu fiquei completamente desatinada, resolvi trabalhar com pessoas que não tiveram dinheiro, como nós, para sustentar a doença. Eu me beneficio com essas crianças, rio com elas, me divirto, sofro quando elas estão doentes, enfim. Metade da minha vida está fincada aqui.
Donna - Perder um filho é mesmo a pior dor que uma pessoa pode experimentar?
Lucinha - É anti-natural, né. O natural é o filho enterrar a mãe e não o contrário. É uma ferida que não cicatriza mais. Aliás, eu não quero que cicatrize. Não sou masoquista, mas gosto de sofrer, de pensar nele. Claro, não passo o dia inteiro assim, não. Sofro, mas depois tomo banho e vou viver a minha vida. Mas fico triste. Penso que é uma pena, pois Cazuza não viu internet, não viu telefone celular, fico pensando nas coisas que ele perdeu. Mas também penso que ele deixou uma obra tão importante... Ele pagou um preço muito alto pelas bobagens que fez, mas deixou uma obra que fará o Brasil inteiro se lembrar dele para sempre. Posso morrer a hora que eu quiser que a memória dele estará preservada na história da poesia brasileira.
Donna - Você escolheu conviver com mães que passam pela mesma dor. Por quê?
Lucinha - Essa doença é tão maldita que quem convive com ela não consegue, nunca mais, se desligar. Eu não conseguiria botar a minha cabeça no travesseiro e dormir a noite inteira se não estivesse fazendo alguma coisa por pessoas que têm essa doença e não têm dinheiro para se sustentar. Por que, além de tudo, é uma doença caríssima. Apesar dos programas do governo, ainda é muito cara. Falta remédio, às vezes tem que comprar. Aqui na Sociedade também atendemos adultos, são 170 pessoas mensalmente. Eu convivo com eles e sei das dificuldades.
Donna - Qual o pior aspecto da Aids hoje?
Lucinha - É saber que ainda não tem cura. É você ter uma faca pendurada na sua cabeça. Ainda se morre de Aids, entende? A pior coisa é saber que não há cura. É uma coisa desesperadora. Eu me lembro do que passamos. O Cazuza era uma pessoa muito diferente, não se entregava. Mas nem todo mundo é assim, as pessoas entram em desespero. Muita gente se suicida. Essa doença é um flagelo para a humanidade. O primeiro caso foi descoberto há 30 anos e ainda não há cura.
Donna - Como você vê a prevenção hoje?
Lucinha - Os jovens voltaram a se infectar, por que estão achando que a doença saiu de moda. De fato, a Aids saiu de moda. O índice de mortes ainda é muito grande, mas as pessoas não morrem mais publicamente. E a doença também está atingindo as classes sociais mais baixas. Até as pessoas mais velhas estão se contaminando, pois com o Viagra, os idosos estão transando.
Donna - Você é uma espécie de conselheira para quem enfrenta esse problema?
Lucinha - Quem dera que eu fosse. Mas nem sempre eu aguento, não tenho suporte para isso. Eu ajudo, converso quando eu posso com o pessoal que frequenta a Sociedade Viva Cazuza, mas é um peso muito grande em cima de mim. Não sou Madre Tereza de Calcutá nem a Irmã Dulce. Sou uma mulher como outra qualquer que a vida caprichou ao castigar. Então eu procuro desanuvear, viver minha vida normalmente, ajudando quem precisa. Quando quero chorar, choro, não devo nada a ninguém. Quando tenho saudades do meu filho vou ao cemitério e, pronto, acabou. Não tenho vocação para o sofrimento.
Donna - Edição de 2014 do Calendário Cabelereiros contra a Aids está fazendo seis anos.
Lucinha - Que este projeto sirva de exemplo para outras empresas. Para nós é muito bom sob todos os aspectos, inclusive o preventivo. O salão de beleza é o local em que as mulheres conversam mais. Nessa profissão também tem muita gente HIV positivo ou que morreu em função da doença. Então, de um modo geral, os cabelereiros estão motivados a falar sobre isso e divulgar as formas de prevenção. Alguns perderam pessoas com essa doença... então, os resultados obtidos com o calendário têm sido a cada ano mais positivos. Além de ser uma coisa muito bonita esteticamente e trazer recursos financeiros para a Sociedade Viva Cazuza, chama a atenção sobre a prevenção da Aids, que as pessoas estão esquecendo.
Entrevista
"Os jovens voltaram a se infectar, por que acham que a AIDS saiu de moda", constata Lucinha Araújo, mãe de Cazuza
Desde que perdeu o filho, há 23 anos, Lucinha comanda a Sociedade Viva Cazuza, que acolhe crianças soropositivas e presta apoio a elas e suas famílias
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