A mais racional é esta: em 1978, um amigo mencionou uma cidadezinha nos Estados Unidos, à beira do Rio Grande, que lembrava muito o México, com uma praça central, uma igreja católica e antigas construções de pedra. Tracy ficou intrigado e, como estava se sentindo impaciente em Galveston, foi para lá e alugou uma casa no dia seguinte.
A outra versão é muito mais significativa, segundo ele mesmo, e tem a ver com campos eletromagnéticos, poderes invisíveis que unem o artista à cidade. "Acho que talvez seja verdade, assim como os pássaros são capazes de voar do norte da América do Sul para a costa do Golfo sem ter um ponto de referência. Não fazem isso porque sintonizam uma rádio dos pássaros."
Hoje, ele continua sendo o residente mais desconcertante na sonolenta San Ygnacio, que tem uma população de menos de 700 habitantes. Fora da cidade, é conhecido por suas pinturas e esculturas que são às vezes homoeróticas ou arraigadas em sua educação católica e seu senso de justiça social. Sua arte, porém, não será seu único legado: a ela se junta seu trabalho de restauração da arquitetura histórica de San Ygnacio. Aos 74 anos, Tracy ainda vibra com a ideia de atrair visitantes para cá, ao mesmo tempo em que pensa em quem poderá assumir seus esforços de perpetuar a história da região da fronteira entre o Texas e o México.
É fácil perceber como ele se destaca em San Ygnacio, onde muitos moradores são descendentes de seus primeiros colonizadores e só na década de 1930 uma estrada pavimentada começou a ligar a cidade ao mundo exterior. Seu uniforme é uma túnica que vai até o joelho; a cabeça, raspada, tem só um rabicho na parte de trás. Os primeiros rumores de que era um satanista que pintava com sangue humano também não ajudaram.
Dez anos depois que chegou aqui, Tracy estabeleceu a Fundação River Pierce, com o objetivo de limpar o Rio Grande, mas a empreitada não foi muito longe. A fundação encontrou um novo propósito quando, em 1998, um residente idoso quis vender sua metade do Rancho Treviño-Uribe, um forte espanhol-mexicano que estava para se tornar um marco histórico nacional. A estrutura não estava em boa forma.
"O certo não é deixá-lo quieto lá, deixar sua essência se deteriorar", disse Tracy ao final de um discurso cheio de xingamentos no qual falou sobre seus motivos para restaurar o forte. "Sinto que sou uma pessoa responsável e cultural, que vê através do [meu] sistema de crença que isso é necessário."
O forte, que é o ponto central de vários edifícios históricos em San Ygnacio, agora é propriedade da Fundação River Pierce. Seu cômodo mais antigo foi construído em 1830, como um posto avançado na época em que as famílias viviam no lado sul do Rio Grande e criavam gado no lado norte. Devido a ataques constantes dos nativos americanos, suas paredes grossas se tornaram refúgio e defesa ao mesmo tempo. Ao longo de mais de 70 anos, cinco quartos e um pátio murado foram adicionados, acréscimos esses que refletem um mundo em mudança. E virou lar permanente para os fazendeiros quando as terras ao norte do Rio Grande se tornaram parte dos Estados Unidos, após o término da Guerra Mexicano-Americana, em 1848.
"A família Treviño-Uribe se mudou para a margem norte para garantir suas terras", disse Mario Sanchez, ex-arquiteto da Comissão Histórica do Texas. Ele chamou o forte de "um excepcional sobrevivente do tempo".
A Fundação River Pierce adquiriu a outra metade do forte em 2008. Demorou mais alguns anos e cerca de US$600 mil para restaurá-lo. A maior parte desse dinheiro veio através de subsídios e doações privadas, de acordo com Tracy. Em junho passado, a fundação começou a promover tours no primeiro domingo de cada mês. Uma experiência sonora abstrata, criada pelo compositor Omar Zubair e instalada em dezembro, dá vida a cada cômodo, com o barulho dos primeiros anos de existência do forte. Nos próximos meses, a fundação vai ampliar seus trabalhos para atrair mais pessoas interessadas no turismo histórico, de acordo com Christopher Rincón, seu diretor executivo.
Porém, poucos moradores de San Ygnacio se envolveram na restauração do forte. É difícil saber de quem é a culpa, do temperamento de Tracy ou da natureza insular das cidades pequenas. Em uma recente tarde de terça-feira, na mercearia do Pepe, uma das poucas lojas de San Ygnacio, o consenso era de que o trabalho da Fundação River Pierce é bom para a cidade, mas que Tracy é estranho.
"Ele fez um monte de inimigos", disse Frank Briscoe, especializado em conservação arquitetônica que trabalhou no Rancho Treviño-Uribe e enfrentou a intromissão intensa do artista. No entanto, acrescentou que, sem sua visão e sua atenção aos detalhes, "não acho que o edifício teria futuro".
Tracy permanece um criador prolífico, mesmo que sua arte não tenha vendido bem nos últimos tempos. Ele vai para a Índia duas vezes por ano para fazer joias para clientes particulares. Um jardim de meditação está em construção em uma de suas quatro propriedades. Ele ainda pinta.
Sua fundação está planejando outra restauração para maio, que vai coincidir com a construção de um mirante do Rio Grande e um santuário de aves, para atrair espécies raras e observadores de pássaros. O mirante vai acabar se tornando um café. "É de fato um novo idioma para a fronteira", disse Leslie Aboumrad, da Frank Architects, em Laredo, cerca de 80 quilômetros a oeste, que trabalha como voluntária para a Fundação River Pierce. "Do jeito que está, não é muito amigável."
É difícil imaginar a fundação sem a personalidade extravagante de Tracy e seu talento para a captação de recursos, mas ele está envelhecendo. "Não consigo me imaginar doando mais da minha vida a essa coisa", disse. E ele tem outras metas, talvez outra exposição em Nova York. "É preciso escolher um padrinho ou madrinha para a organização, alguém que ajude a produzir o futuro", afirmou.
Ele vai continuar vivendo em San Ygnacio. "Você recebe a energia das pedras dessas construções", disse, referindo-se os poderes invisíveis que o atraíram a San Ygnacio. "Somos muito mais sensíveis a isso do que pensamos."
Por Serena Solomon