Após fazer um relato nesta segunda-feira (28) em que conta ter sido estuprada por um motorista do Uber, a escritora Clara Averbuck, colunista da Revista Donna, escreveu um texto para a Revista Claudia. Na publicação, Clara diz que vivemos em um mundo onde as mulheres não são respeitadas e que toda masculinidade, "calcada em violência, dominação e execreção de tudo que é feminino", precisa ser repensada.
"Que meu caso sirva para que outras mulheres não tenham medo de expor o acontecido. Que não se culpem. Que, se não se sentirem seguras para fazer uma denúncia formal, sejam respeitadas. Porque o sistema é um conto de fadas mal contado, as cadeias estão explodindo de gente que, em muitos casos, nem deveria estar lá. E a polícia é despreparada para lidar com essas questões delicadas. É por isso que, coletivamente, pensamos, esta tarde, na campanha #MeuMotoristaAbusador e #MeuMotoristaAssediador", escreveu a escritora.
Clara ainda convida mulheres a denunciarem situações de assédio utilizando as hashtags #MeuMotoristaAbusador e #MeuMotoristaAssediador, criadas nesta tarde. Algumas horas após a criação da campanha, as tags ganharam as redes sociais. A jornalista Nina Lemos fez um relato sobre uma corrida de táxi há quatro anos.
Leia mais:
Uber expulsa motorista após relato de estupro de Clara Averbuck
Clara Averbuck: Tudo é político quando você é uma mulher
Clara Averbuck: Quanto vale seu corpo?
Leia o texto na íntegra:
"Confesso que fiquei assustada com a repercussão do relato da violência que sofri. Mulheres são agredidas e estupradas todos os dias na rua, em casa, em carros, assediadas no transporte público. O que ocorreu ontem foi mais um dia na vida de uma mulher. Virei estatística. De novo.
Estava em uma festa bebendo e me divertindo em um lugar maravilhoso e um amigo chamou um Uber para que eu viesse pra casa, pois já estava alta. O motorista veio me dando ideia. Eu não dei moral. Não sou a vítima pura e casta que desperta dó, sinto muito; sou uma mulher livre, solteira e vivo a minha vida.
Sou mulher. É este o problema.
Dedico meus dias a lutar pelos direitos das mulheres e conheço bem os números de violência e como o sistema é despreparado para lidar com o problema. Por isso ontem, quando o motorista enfiou o dedo dentro da minha vagina depois de me empurrar do carro na rua escura ao lado da minha, eu vim pra minha casa e não fui à delegacia.
Não fui fazer corpo de delito. Não fui mesmo. Quem vive na fantasia de que “é só ir à Delegacia da Mulher” certamente jamais esteve em uma.
Eu estive. Dezenas de vezes. Felizmente, nunca por violência cometida contra mim. Infelizmente, acompanhando mulheres absolutamente fragilizadas que precisavam de apoio e lá apenas encontraram despreparo e desencorajamento para a denúncia. Eu não estava e não estou em condições de passar por isso.
Muitos, neste momento, cobram a Uber para punir o indivíduo. A empresa foi muito solícita e disse que o motorista acabou sendo desligado. A sanha “punitivista” da internet quer logo print, rosto, nome, endereço. Não é assim que as coisas deveriam funcionar. Não vai ter isso.
Me sinto mal, me sinto suja, me sinto culpada por ter bebido tanto e estar tão vulnerável. Me sinto novamente a menina de 13 anos que foi estuprada por três no banheiro de uma festa da escola.
E me recuso a incorrer no mesmo erro de quando eu era adolescente, abraçando a culpa. Ela não foi minha. A culpa não foi minha. A culpa não foi minha, não foi dos meus amigos que “me deixaram” ir embora sozinha, não foi estar sozinha. A culpa é de quem comete a violência. Sempre. Impreterivelmente.
Ainda estou decidindo se quero ir a uma delegacia da mulher, ser questionada; já que a violência sexual é o único crime que a vítima tem de provar. Ao mesmo tempo que não quero que esse homem abuse de outras mulheres, estejam elas vulneráveis ou não. Eu não quero me submeter ao que já vi tantas sofrerem na delegacia.
Porém, militante que sou, assim como me recuso a entrar no senso comum de que a culpa foi minha, me recuso a deixar essa história passar batida e, em vez de ficar em posição fetal com vontade de limpar minhas partes íntimas com cloro, me juntei com outras mulheres maravilhosas.
Em esforço coletivo criamos uma campanha para que as vítimas de abusos em serviços de transporte, seja Uber, táxi ou qualquer outro, não tenham vergonha de denunciar: a culpa não é sua, mulher. A culpa é de um sistema que nos vitimiza. A culpa é de quem acha que a mulher que não vive em uma bolha de castidade merece ser violada.
A culpa não é sua. A culpa não é nossa.
Que meu caso sirva para que outras mulheres não tenham medo de expor o acontecido. Que não se culpem. Que, se não se sentirem seguras para fazer uma denúncia formal, sejam respeitadas. Porque o sistema é um conto de fadas mal contado, as cadeias estão explodindo de gente que, em muitos casos, nem deveria estar lá. E a polícia é despreparada para lidar com essas questões delicadas. É por isso que, coletivamente, pensamos, esta tarde, na campanha #MeuMotoristaAbusador e #MeuMotoristaAssediador.
Infelizmente esses casos são cada vez mais comuns. Queremos, dando voz às mulheres que já sofreram abuso e assédio, que esses serviços de transporte sejam repensados. Que não sejam vendidos como um 'bico' que qualquer um pode fazer. Que esses prestadores de serviço sejam escolhidos com mais cuidado e sejam educados a respeitar as mulheres.
Aliás, não só os motoristas; não vivemos em um mundo que nos respeita. Toda a masculinidade, calcada em violência, dominação e execração de tudo que é feminino, precisa ser repensada. O mundo é, sim, misógino, mas nós não vamos mais nos calar."