Tinha já lido algum ensaio e um começo de romance de Ricardo Piglia quando de fato o conheci: comprei meio no escuro um livro de nome Nombre falso, porque ali se dizia, não lembro se na orelha ou na quarta capa, que se tratava da edição de um inédito de Roberto Arlt, escritor argentino do começo do século 20, que eu conhecia de ler seu Juguete rabioso e, com mais emoção ainda, seu Los siete locos. Um inédito desse maluco, contemporâneo e de certa forma rival de Borges, filho de imigrantes que havia crescido em subúrbio de Buenos Aires e que havia desenvolvido sua leitura numa das promissoras bibliotecas de bairro, um inédito dele deveria valer a pena.
Fui ler, e o livro de Piglia era mais do que o suposto inédito: era uma espécie de novela policial em que se narrava a busca desse texto de Arlt, que aproveitava para reconstituir sua figura, sua imagem, de jornalista abrutalhado, que gostava de boxe e do bas-fond portenho, com uma escrita tosca de grande força. Eu ali, aprendendo, querendo mais – eu, leitor de Borges, acostumado à limpidez classicista da linguagem de Borges, sua elegância, suas ironias delicadas, sua risada de salão, seu manejo soberano de infinitos recursos da alta cultura letrada mundial. Eu, esse leitor, fascinado pelo lado oposto representado por Arlt – que me era agora apresentado num livro assinado por Piglia.
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Piglia, o nome, é obviamente italiano, quer dizer, ele era, seria, um daqueles filhos de imigrantes que o aristocrata Borges abominava, nos anos 1920 e 30, porque considerava que os que chegavam estavam de algum modo conspurcando o espanhol portenho, legítimo apenas quando falado pelas famílias patrícias, como a de Borges, claro. Piglia era, então, alguém como Arlt, apenas que uma geração depois; era como Sábato, outro filho de imigrantes, também ele contemporâneo de Borges e seu êmulo – Sábato de esquerda, Borges de direita; Sábato romancista, Borges contista e ensaísta.
E Piglia?
Piglia, nascido nos anos 40, não pagava mais o mesmo preço. Podia ser descendente de imigrantes, como tudo de provisório e frágil que isso podia significar, mas também era um letrado desse novo mundo, já povoado de Arlt, Sábato, Borges, Bioy Casares, as irmãs Ocampo e tudo o mais. Cosmopolita como costumam ser os letrados argentinos, Piglia usufruía de todo esse patrimônio – mas parecia escolher os desviantes, os menos prestigiados, porque neles era possível enxergar mais do que aquilo que se dava a ver na obra canônica de um Borges.
Por isso essa novela trans-Arlt, que era e não era verdade, porque o centro da coisa era a inventividade de Piglia, que brincava de simular realidade em sua ficção, assim como, em seus ensaios – alguns proverbiais, como aquele livro em que estuda a prosa de outro maluco portenho, Macedônio Fernández, ou aquele artigo em que postula a tese de que todo conto conta duas histórias, uma na superfície e outra nas entranhas, e tudo está no modo como o contista administra essa duplicidade.
Em seu romance – também ele meio policial, também ele meio ensaístico – chamado Respiração artificial, romance que muita inveja me dá por não termos nada parecido em português e no Brasil, aparecem debates literários radicais, como aquele em que o narrador observa que Borges é o maior escritor argentino do século 19, enquando Arlt o é do século 20.
Tanta ideia, tanto palpite, tantas intuições apresenta sua obra...
Obra que, agora, recebeu seu definitivo ponto final.