No livro 1984, George Orwell nos apresenta um governo totalitário, dividido em quatro ministérios. O do Amor, controla e espiona a população. O da Verdade, mente. O da Fartura, privilegia os poderosos. O da Paz, faz a guerra. Assistindo a uma reportagem do Jornal Nacional durante a semana, tive certeza: o nome do mais novo programa do governo federal foi inspirado nessa mesma lógica. O aplicativo Celular Seguro resolve todos os seus problemas... depois que o seu aparelho foi roubado. Ora, se já foi roubado, pode-se falar em qualquer coisa, menos em segurança. A ideia, em si, não é ruim. Centralizar em uma única ferramenta a comunicação da ocorrência às operadoras e aos bancos. Eles não prometem, porém, o bloqueio imediato do telefone móvel. Ou seja, assim como ocorre na natureza, o predador está desafiado a ser mais rápido, já que a presa lhe concederá alguns preciosos minutos para que se refestele. É aquela velha história. Uma gazela mais veloz obriga o leão a correr mais. E vice-versa.
Só em 2022, mais de 1 milhão de celulares foram furtados ou roubados no Brasil. O número oficial é de 999.223, mas é consenso que existe uma grande subnotificação. Muita gente simplesmente não faz queixa à polícia por acreditar que seu bem não será mesmo recuperado. O governo acredita que o novo aplicativo reduzirá a atratividade desse tipo de crime. Até pode ser. Entretanto, é pouco provável que, diante do novo e revolucionário aplicativo Celular Seguro, os meliantes hoje atuando nesse ramo vejam subitamente a luz e decidam abandonar o crime. Simplesmente vão roubar outras coisas.
Não quero aqui desfazer da iniciativa, apoiada pelos bancos, que sofrem com pedidos de restituições e bloqueios feitos por clientes que tiveram seus celulares levados pelos criminosos. Permito-me, porém, sonhar com um país no qual os celulares não sejam roubados com tanta facilidade e impunidade. Um país onde os cidadãos possam passear despreocupados pelas calçadas sem buracos. Lugares assim existem, porque os eleitores e seus governos decidiram que, em vez de investir em tecnologia pós-roubo, o mais correto era atacar primeiro as causas da violência.
Enquanto esse dia não chega, vamos comemorar a chegada do Celular Seguro. O governo está aí para cuidar de nós, depois do assalto.